O meu avô suspenso na memória

O meu avô suspenso na memória

Escrito por Sérgio Raimundo

“E se o céu me caísse em cima seria, pelo menos, um destroço”, ciciava o meu avô enquanto cavava com a unha um buraco para enterrar o botão da camisa. Não me sai da cabeça o meu avô engolindo pequenas medalhas de comprimidos e disparando rajadas de tosse tal qual o fez nas matas de Homoíne quando caçava porcos selvagens. Falando em Homoíne, foi no Massacre de Homoíne onde o meu avô viu os seus pais fuzilados com catanas. Sobre Homoíne não falo mais…

O meu avô sentado numa cadeira de rodas, com um molho disperso de palavras estendidas na boca torta, virada para o além por uma rajada de paralisia, os seus olhos a meia-lua como se anunciassem o fim da sua própria noite. Tenho ainda suspenso na memória a imagem dele fuzilando com uma bengala um exército de moscas que lhe sugava quilolitros de sangue nas pernas atropeladas pela velhice.

E se o céu me caísse em cima seria, pelo menos, um destroço

“E se o céu me caísse em cima seria, pelo menos, um destroço”, dizia o meu avô quando foi evacuado pelos meus tios para o lar de idosos de Lhanguene onde apodreceu sem mínima oportunidade para ser um destroço. Agora dá-me vontade de acordá-lo da tumba da memória, acertá-lo a gravata, reprogramá-lo o calendário da vida, poli-lo as pernas atropeladas pela idade, pegá-lo pela mão e gritar-lhe aos ouvidos: “o céu teve pena de ti, avô, e deixou os teus filhos caírem-te em cima”.

O meu avô suspenso nos corredores do lar, com os pés sempre suspensos para ser trocado fraldas, com a memória despenhando sem parar no vazio e sem mais molhares e sem a língua firme para morder o céu-da-boca e dizer: “…seria, pelo menos, um destroço”. Eu era miúdo, mas vi depois a cadeira de rodas do meu avô suspensa na parede e ouvi vozes dos meus tios suspensas dentro de casa dividindo-se nos quartos e dividindo tudo; “e os camelos do banco não nos dificultam o processo?”, dizia o meu pai com a voz embrulhada no funil da mão para que o eco não transbordasse em toda casa.

Eu era miúdo, mas vi depois a cadeira de rodas do meu avô suspensa na parede…

“E se o céu me caísse em cima seria, pelo menos, um destroço”, mas o céu teve pena de ti, avô, foi um líquido nos pulmões que te despedaçou e não tiveste tempo para ser um destroço, terminaste como um eco arrastado pelo vento no lar. E os meus tios arrastaram tudo que era do meu avô. Os meus tios só abriram a porta de casa para dar um fato a um senhor zarolho, com eucaliptos de pêlos nos túneis das narinas, do lar e dizer-lhe: “façam tudo com a Funerária Luz do Paraíso e depois mandem-nos as despesas”.

A casa do meu avô foi despedaçada em fatias, os macacos dos meus tios disputaram os galhos dos bens e eu vi o avô suspenso na cadeira de rodas à parede e vociferando: “…seria, pelo menos, um destroço”. Francamente, avô, que destroço esperas ser no meio desses macacos, tu que agora espumas de vermes numa sepultura qualquer inundada de capim?.

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