Projecto KAYA: onde os sem-tecto sentem-se em casa

Projecto KAYA: onde os sem-tecto sentem-se em casa

Esta semana fomos conhecer o projecto KAYA, cujo foco é prestar assistência social variada para pessoas mais carenciadas, num espaço acolhedor, na cidade de Maputo. Por agora, a iniciativa destaca-se pelo fornecimento de refeições gratuitas diárias. O intuito vai além disto, pois vislumbra-se um futuro risonho onde os desprovidos de condições básicas humanitárias possam formar-se para o mundo.

Chegamos à KAYA, – que significa ‘casa’, em algumas línguas locais, principalmente no sul de Moçambique –, por entre as ruas da baixa da capital, Maputo. Somos recebidos por Ruy Santos e mais três colaboradores, dois homens e uma mulher. Nos esboçam sorrisos e, gentilmente, nos convidam para sentarmo-nos, enquanto mantêm o foco em organizar o espaço para receber o principal activo do projecto, as pessoas.

 

Sentamo-nos. As cadeiras – as mesmas onde aconchegam-se os beneficiários – são plásticas, brancas como as mesas, como as paredes e tal como o tecto da grande sala de jantar. Este excesso unicolor, ou domínio do branco, é mesmo propositado “para inspirar paz, conforto e higiene”.

Ainda não se faz a hora certa para as refeições chagarem às mesas, decoradas com capulanas multicolores. Por isso, aproveitamos o tempo para conversar com o Ruy Santos, o patrono da iniciativa.

“Estas são coisas que só vemos nos outros países. Nunca, na minha vida, poderia imaginar que isso pudesse acontecer aqui em Moçambique. Estou muito feliz”

Ele explica que “KAYA – Espaço para Todas” é uma resposta à necessidade de continuar com “Sopa Solidária” – um projecto de distribuição gratuita de refeições que surgiu em 2014, mas suspenso em 2019 devido às restrições de circulação impostas pela pandemia da Covid-19.

A “Sopa Solidária”, – um banco alimentar focado na alimentação de crianças e idosos –, tinha no seu cerne o propósito de responder às necessidades de emergência e carência extrema.

“A nossa maior experiência foi no período pós-ciclone Idai, na zona centro, onde alimentávamos 13 mil pessoas em acampamentos instalados pelo Instituto Nacional de Gestão de Calamidades”, recorda.

O impacto negativo da pandemia revolucionou a iniciativa de provimento de refeições para os mais carenciados. “E, porque queríamos continuar, apostámos em ter um espaço e é nele onde implementamos o KAYA”, revela.

O espaço encontrado foi cedido pela Sociedade de Desenvolvimento do Porto de Maputo (MPDC). Estava abandonado. Nos ventos de outrora tinha sido um bordel. Agora, exibe um requinte simples e modesto e ao poucos ganha mais brilho.

O projecto KAYA, um upgrade da “Sopa Solidária”, abriu as portas há três semanas e já cadastrou mais de 600 pessoas, serviu mais de 12 mil refeições, conta Ruy. A iniciativa, revela o mentor, foi concebida para servir de um espaço de integração social multifacetada.

“Durante o dia vai funcionar como um espaço de formação técnico-profissional. Teremos programação e robótica, biblioteca, cursos de costura e um gabinete de assistência psicossocial.  Vamos também disponibilizar balneário para as pessoas realizarem todo o tipo de higiene pessoal, incluindo lavar e secar a roupa”, revela.

Para o caso de mulheres que beneficiarem, por exemplo, de formação em serviços de cabeleireiro, poderão trabalhar num espaço que ali já existe – ainda a ser apetrechado – e obterem seus dividendos.  “Queremos que as pessoas aqui formadas se tornem progressivamente independentes”.

“Queremos que no fim do dia o KAYA seja um espaço onde instituições do país possam desenvolver os seus projectos de responsabilidade social”

Há mais. Apesar de ser pequeno, o tamanho do KAYA parece incomensurável, porque ainda poderá servir de galeria para exposição de obras. E neste aspecto, “a ideia é que haja sinergia com a vizinha galeria da Portos de Maputo [MPDC]” para democratizar o acesso às artes e culturas para o grupo social alvo do projecto.

Enquanto a conversa com Ruy se desenrola, momentaneamente nos atentamos às expressões de alegria nas pessoas que aqui adentram, para ter a única refeição digna do dia, possivelmente.

Foi o caso de um rapaz de 12 anos, que, no ano passado, desistiu de estudar já na oitava classe e cruzou a fronteira de Gaza para Maputo, à procura de melhores condições. Ele vive com a tia no bairro da Malhangalene, na cidade de Maputo, e por iniciativa própria decidiu vender ovos cozidos.

É uma jornada diária de incertezas. Embora venda alimento para outras pessoas, ele mesmo nunca sabe quando poderá arranjar o seu estômago nas mais de 12 horas em que rodopia na baixa com seu balde de ovos. Sempre depende de algumas vendas para delas obter dinheiro para comer, pelo menos, um biscoito. Contudo, existe a certeza do alento que lhe chega, todos os dias, precisamente às 18h quando Ruy Santos começa a fazer o cadastro das pessoas.

Entre os que vemos tomando as suas refeições e balbuciando palavras às gargalhadas estão crianças, jovens, velhos e mulheres que “trabalham” de dia, outras de noite, por imperativos da própria “profissão”.

Elas recusam-se a revelar-nos os seus sentimentos pela iniciativa, mas falamos com um homem que não exita em mostrar a sua satisfação.

“Estas são coisas que só vemos nos outros países. Nunca, na minha vida, poderia imaginar que isso pudesse acontecer aqui em Moçambique. Estou muito feliz”, diz, Leonel Juma, um jovem já quase senhor que, à semelhança do rapaz, saiu de Gaza (Xai-xai) para Maputo à procura de melhores condições de vida.

“De manhã quase nada consigo para comer, mas quando já é de noite sei que terei algo quente para comer. Na verdade, o que nos faz vir aqui é aquela ideia de comida sagrada de casa”, diz, enquanto come o pão que acompanha o prato do dia, sopa de legumes.

Há mais de um ano na capital, Juma foi acolhido pelas ruas “porque alugar casa está caro”, e o pouco dinheiro que consegue angariar lavando carros ou arranjando-os estacionamento, envia para o sustento das suas duas filhas e esposa, em Gaza.

O impacto negativo da pandemia revolucionou a iniciativa de provimento de refeições para os mais carenciados

As pessoas que buscam por refeições chegam aqui vindo de vários bairros da capital. E Ruy explica a importância do processo de cadastro diário. No processo, anotam-se o nome, a idade e o bairro de proveniência.

“Isso vai nos permitir fazer uma radiografia dos focos de mais carência na cidade”. Antigamente, os activistas voluntários procuravam as pessoas para oferecer os serviços da “Sopa Solidária”. Mas o cadastro que chegou com o KAYA “já nos permite saber em que bairro faz sentido criar, de forma mais estruturada, um outro espaço ‘KAYA’ e evitar que as pessoas, principalmente criança e velhos, saiam de longe para a baixa da cidade”.

Ruy Santos disse que no espaço KAYA servem-se as refeições completas, como se estivesse no restaurante. “Não é por estarmos a atender uma franja mais carenciada da sociedade que deixamos o bem-estar de lado. Procuramos dar o máximo de conforto a essas pessoas”.

Mais ainda, “queremos que no fim do dia o KAYA seja um espaço onde instituições do país possam desenvolver os seus projectos de responsabilidade social. Por outro lado, elas podem complementar as nossas necessidades formativas e infraestruturais”.

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