Um mangal alienado à extinção em nome de investimentos imobiliários

Um mangal alienado à extinção em nome de investimentos imobiliários

Se um dia o mangal desaparecer o que será de Moçambique, com as mudanças climáticas que tendem a se intensificar? Esta é uma questão que pode não ser pontual, mas a realidade pode estar bem próxima e a resposta deve ser urgente. A verdade é que o mangal está mesmo a desaparecer, sendo que o perigo pode estar à espreita.

Texto: Hermenegildo Langa

Os números falam por si. A destruição do mangal para dar lugar à construção de empreendimentos imobiliários na capital do País tem vindo a ganhar proporções assustadoras, nas duas últimas décadas. E poucas são as acções para travar a sua destruição.

Nos últimos anos, um pouco por toda a zona costeira de Maputo, tem-se assistido à construção de residências em zonas de mangal, entre mansões de quem quer ter uma vista privilegiada ao mar, até pequenas moradias improvisadas, apesar das placas das autoridades municipais classificando as áreas como “protegidas”.

Esta é uma prática que envolve o Município da Cidade de Maputo, pois compete à edilidade a atribuição de licença de construção na capital, tal como refere o artigo n.º 6 da Lei de Base das Autarquias. No entanto, se estas arbitrariedades não envolvem a autarquia como entidade reguladora na atribuição de licenças, no mínimo estão envolvidos alguns funcionários, através de esquemas de corrupção.

Embora o mangal desempenhe um papel muito importante na reprodução de espécies marinhas (como o camarão e caranguejo), além de ser um aliado imprescindível para o meio ambiente, sobretudo num momento em que as mudanças climáticas afectam de forma cíclica o País, a sua destruição não pára de acontecer ao longo da zona da Costa do Sol. Só para termos uma ideia, nos últimos cinco anos milhares de hectares de mangal foram destruídos nesta zona costeira para dar lugar a infra-estruturas.

Entretanto, enquanto a edilidade nega, vezes sem conta, a atribuição de licenças de construção em zonas de mangal alguns proprietários destas infra-estruturas insistem em afirmar terem tido o aval do município para erguer os seus empreendimentos, o que leva a crer a existência de funcionários ligados à autarquia da capital envolvidos neste esquema que tende a perigar a cidade de Maputo face aos desastres naturais.

A construção de um condomínio de luxo no bairro Triunfo, numa zona de protecção ambiental, ao longo da Costa do Sol, pela Top Logística, é um dos casos recentes que revelam o desrespeito pelo meio ambiente, mas também pela vida humana e das espécies marinhas. Ademais, este é um dos casos que revela que, afinal, o município tem conhecimento dos projectos que vão destruindo o mangal em benefício de investimentos imobiliários.

Este caso, entre avanços e recuos, remonta há três anos, quando a edilidade atribuiu uma licença de construção de um condomínio, embora inicialmente, em 2020, tenha lançado um concurso para se erguer um circuito pedonal como forma de proteger o mangal.

De lá para cá “muita tinta” já correu, isto porque a edilidade da capital moçambicana, apesar de já ter demolido outras residências no local, não vê neste caso específico incongruências para não se avançar com o projecto. No entanto, o Ministério Público (MP), através da Procuradoria-Geral da República (PGR), insiste em embargar o projecto, alegando estar numa zona com um ecossistema sensível, neste caso o mangal.

Para o Município de Maputo, ainda que o projecto se encontre numa zona de protecção ambiental, este é do interesse da própria edilidade. Neste sentido, uma nota da autarquia a que o MZNews teve acesso refere que “a elaboração do projecto do complexo habitacional e de um circuito pedonal de protecção do mangal numa extensão perimental de um quilómetro é de estreita articulação com o município”.

Ao contrário do município que não vê nenhum problema de o projecto avançar, ou seja, que liminarmente não se importa com o impacto da destruição deste ecossistema para dar lugar a este empreendimento residencial, a PGR continua a lutar em nome do meio ambiente, pois a capital moçambicana, em particular, e o País, em geral, já se ressentem dos efeitos das mudanças climáticas. Neste caso, os mangais são um aliado para o combate às mudanças climáticas, absorvendo o dióxido de carbono, além de servirem de berçário para a reprodução de várias espécies marinhas.

Segundo a providência cautelar divulgada pela PGR, em Abril deste ano, a edilidade deverá anular a deliberação “que serviu de base para a atribuição da parcela em questão, atendendo que está desprovida de fundamentação legal e viola os princípios da legalidade e da fundamentação dos actos administrativos” e “restaurar o mangal na área supra citada e adjacente”.

“A zona em causa é de `ecossistema sensível´, pelo que deve ser protegida de qualquer construção”, realçou o MP, numa nota onde intima o Conselho Municipal da Cidade de Maputo (CMCM) para revogar o DUAT de uma parcela atribuída para a construção de um condomínio residencial e circuito pedonal na região do mangal, na zona do Triunfo, bairro da Costa do Sol, salientando ainda que a edilidade da capital do País violou o disposto do artigo 14 n.º2, da Lei n.20/97, de 10 de Outubro, e o Plano Parcial de Urbanização da Área da Marginal da Cidade de Maputo (PPU), ao atribuir a licença para o referido empreendimento, e essa medida “acarreta à urbe sanções disciplinares, administrativas, cíveis e penais”.

Mas não é apenas o Ministério Público que intenta esta acção contra o Município de Maputo, um estudo conjunto da Procuradoria e do Centro do Direito de Ambiente e Biodiversidade e Qualidade da Vida (CEDAB), da Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane, concluiu, entre outros, que “o PPU considera os mangais um património de grande importância, que deve ser salvaguardado, recuperado e, onde seja possível, incrementado, atendendo a sua importância ecossistémica para os seres vivos, na estabilização de solos contra a erosão, biofiltração de poluentes, sequestro de carbono, contribuindo assim para a mitigação das mudanças climáticas”.

Mas também, o Centro de Integridade Pública (CIP) e o ambientalista Carlos Serra já denunciaram a construção do condomínio residencial naquela zona proibida e que a sua concretização colocaria em risco a biodiversidade e vida humana, no entanto, este é apenas um caso, mas a zona costeira da Costa do Sol já vem sendo invadida há anos, sob o olhar impávido das autoridades, o que antevê o desaparecimento deste ecossistema caso não se avance com algumas medidas urgentes.

Afinal porque se insiste neste projecto… Quem são os donos?

No País, numa prática recorrente em casos supostamente ilegais, praticamente se desconhece os verdadeiros donos dos projectos, pois as empresas envolvidas são constituídas de modo a não se clarificar os seus proprietários. O caso da empresa envolvida neste projecto residencial no bairro do Triunfo, em zona de mangal, também não foge à regra, mas aqui há um detalhe que salta à vista.

A empresa Top Logística, por sinal a que foi concedida a licença pelo município da capital para a construção do condomínio de luxo em uma zona protegida, estranhamente não possui alguma “legalidade” para a actividade de construção civil, segundo refere o Boletim da República (BR), publicado a 12 de Janeiro de 2022.

A Top Logística SA, segundo consta no BR, é uma sociedade que tem por objecto social as seguintes actividades: importação, exportação, armazenamento, distribuição, transporte e comercialização de combustíveis líquidos (incluindo-se biocombustíveis, gás de petróleo liquefeito e gás natural, e todos os seus derivados; realização de prospecção, pesquisa e tratamento, processamento e exploração mineira, incluindo a compra e venda, importação e exportação de recursos minerais e matéria-prima; assessoria, consultoria e assistência técnica mineira).

Segundo o BR em alusão, as actividades da Top Logística incluem ainda o desenvolvimento e gestão de projectos mineiros; consultoria de estudos geológicos, hidrogeológicos, ambientais e mineração; venda de areia e pedra para construção. Estranhamente, o documento não faz menção à actividade de construção civil, o que suscita mais dúvidas sobre a actuação desta empresa.

Então, como a Top Logística adquiriu o DUAT para a construção do empreendimento em causa sem que esteja ligada ao ramo de construção? Disso ninguém está disposto a revelar o mistério, tanto no município assim como na empresa. No entanto, sabe-se que inicialmente o município havia aberto um concurso público em 2020, com vista a apurar o construtor do circuito pedonal, tal como se pensava antes, mas sucede que a Top Logística, sem ter feito parte dos concorrentes, foi a empresa escolhida pelas autoridades autárquicas.

Na verdade, são várias questões ainda por colocar em torno deste caso, mas a edilidade nunca esteve disposta a responder, limitando-se apenas em querer ver o empreendimento a avançar, demonstrando que o poder financeiro ganha a dianteira nas autoridades municipais, mesmo que este coloque em perigo a própria vida.

Uma catástrofe à vista…

Apesar de os ambientalistas classificarem o nível de devastação deste ecossistema de tal forma preocupante, defendendo uma intervenção urgente para travar o problema, dado o prejuízo que está a trazer ao País, no geral, e às comunidades costeiras, em particular, nota-se que há quem tenta ignorar a sua importância, em nome do negócio imobiliário, deixando assim uma séria incógnita para as futuras gerações.

Hilário Tembe, residente no bairro Chiango, ao longo da Costa Sol, há mais de  32 anos, conta que apesar da destruição do mangal acontecer há vários anos, incentivada pelas comunidades para a produção de carvão vegetal, o fenómeno agravou-se nos últimos tempos com a entrada no País de vários investidores do ramo imobiliário. Aliado a isso, vários problemas se têm agudizado naquele bairro, desde inundações até à fome.

“Sempre que se fala de chuva ficamos apreensivos, pois sabemos que temos de abandonar as nossas residências por causa das inundações, mas isso não acontecia antes da construção dessas mansões ao longo da Costa Sol. São mansões de pessoas que possuem tanto dinheiro”, afirma Hilário Tembe, lamentando que “muito mangal foi destruído para dar lugar a essas residências, mas o Governo nada faz porque os donos possuem poder financeiro.

Partilhando a mesma ideia, Odete Magaia, também residente no bairro Chiango, secunda que embora no passado as comunidades cortassem o mangal para fazer lenha e carvão a sua destruição não acontecia como se verifica agora. “Antes cortávamos mangal, mas este voltava a se recompor. O camarão conseguia encontrar o seu habitat quando chegasse o período de reprodução. Agora, devido a essas infra-estruturas, até passamos fome porque a maioria da comunidade vive na base de produtos pesqueiros. Eles (investidores imobiliários) fazem tudo ao seu bel-prazer”, realça Odete Magaia, para depois acrescentar que “só pedimos para eles olharem um pouco para nós os pobres, estamos a sofrer com a destruição do mangal”.

Um caminho rumo ao abismo

Moçambique é o 13.º país com maior cobertura de mangal no mundo, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), possuindo cerca de 396.080 hectares, com ocorrência desta espécie na zona costeira das províncias de Cabo Delgado, Nampula, Zambézia, Sofala, Inhambane, Gaza (estuário do rio Limpopo) e Maputo. No entanto, a destruição deste ecossistema se tem verificado quase em todas as províncias, embora não aconteça com a mesma proporção.

Contas feitas pelo Governo dão conta de que o País perde anualmente mil hectares do mangal, e pelo menos cerca de 88 a 200 hectares são perdidos na capital moçambicana devido à expansão urbana e outros factores, segundo dados da WWF e do Ministério do Mar, Águas Interiores e Pescas.

Mais uma vez, enquanto para o resto das províncias do País o motivo de destruição deste ecossistema tenha a ver com a produção do carvão vegetal, na capital moçambicana grande parte do mangal é derrubado por ambições do negócio imobiliário.

Coincidência ou não, há dias, a Procuradora-geral da República, Beatriz Buchili, alertou para as construções desordenadas e em zonas impróprias na capital do País, com consequências graves para o ambiente, tendo desafiado a nova Procuradora-chefe da cidade de Maputo, Natércia Dias, para redobrar a sua actuação em resposta a esta problemática.

“Um pouco por toda a zona costeira de Maputo assiste-se à construção de residências na zona do mangal, entre mansões de quem quer ter uma vista privilegiada, até pequenas moradias improvisadas, apesar das placas do Município de Maputo que classificam a área como zona protegida”, referiu a magistrada, sublinhando que as construções em zonas impróprias colocam em risco o meio ambiente e os cidadãos, além de “comprometer o futuro das gerações vindouras”.

Afinal, até que ponto a legislação moçambicana está preparada para contrariar esta destruição do mangal em nome de infra-estruturas?

A activista e especialista em Direito Ambiental, Regina Charumar, defende que a legislação ambiental em vigor no País é rica e com elementos suficientes para lidar com qualquer questão ambiental.

“A Constituição da República de Moçambique, a Lei do Ambiente e outros dispositivos legais têm conteúdos suficientes e úteis para reverter e melhorar a situação ambiental, e em específico a situação referente à destruição do mangal. O que está a falhar é a implementação das leis e do acervo legislativo que temos. Há falta de organização e fiscalização”, explica a ambientalista, para depois realçar que “as leis existem mas não são aplicadas na prática, e isso faz com que a destruição continue”.

Regina Charumar lembra ainda que os mangais são um berçário onde espécies diferentes se reproduzem e criam seus habitats naturais, garantindo a continuidade da biodiversidade e dos ecossistemas importantíssimos para o meio ambiente. “A sua devastação, além de nos colocar em situação de vulnerabilidade acentuada em caso de calamidades naturais, também acaba com ecossistemas naturais, espécies marinhas e a biodiversidade no geral, colocando em risco a vida humana”.

Alinhando na mesma posição, um estudo desenvolvido pelo Centro Terra Viva (CTV), intitulado “Governação e Gestão de Mangais em Moçambique”, salienta que o quadro legal nacional confere, tanto de forma geral, como de forma específica, protecção às florestas de mangal. Contudo, na realidade a sua implementação é ainda muito deficitária.

“Tanto a Lei de Pescas, de Conservação, bem como a Lei de Investimentos, pouco fazem menção directa à floresta de mangal como ecossistema em particular. Isto constitui uma grande fragilidade, porque é conferida protecção geral às florestas de mangal, que no entanto negligencia aspectos ecológicos, sociais e económicos particulares, que requerem medidas de gestão e conservação pertinentes”, afirma o estudo, sublinhando que no que diz respeito à construção de infra-estruturas os mangais estão protegidos pela proibição de destruição do próprio ecossistema, mas pouco é dito ou limitado quando se trata de outras infra-estruturas a montante, incluindo o funcionamento de barragens.

Na verdade, apesar de haver estas ambiguidades na legislação moçambicana, a protecção do mangal e de outras espécies consideradas importantes para o meio ambiente, tanto quanto para o homem, devia ser uma prioridade, pois os sinais dos perigos que o País incorre com os desastres naturais são vários, ainda assim tardam acções para contrariá-los.

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