Porque isso não é violência…

Porque isso não é violência…

Tiras o cinto, as calças caem-te e as minhas lágrimas também me caem. Bates-me porque as palavras não servem, não têm nenhum sentido quando se fortalece um lar. A mesma mão que tirou duas cabeças de vaca, fatos coloridos para os meus pais, hoje enrola um cinto e bate-me. Pouco reclamo porque sei que a paciência é o cimento que fortalece as paredes de um lar.

Bates-me até a blusa toda se evaporar e ficarem-me duas alças nos ombros que me seguram a paciência, até os cabelos inundarem a sala como mechas de uma vassoura partida e bates em mim porque sou tua mulher, aquela que te custou cabeças de vaca.

Bates-me porque as palavras não servem, não têm nenhum sentido quando se fortalece um lar.

O meu corpo corta o cinto ao meio como as atletas rasgam a meta no atletismo, mas a corrida não termina, a violência continua; vens com punhos cerrados no meu rosto como se me entregasses a estafeta nessa corrida de paciência onde estou. Bates-me e já nem choro, porque isso não é violência, mas sim uma forma de construir um lar firme, um lar que tenha mais valor que duas cabeças de vaca.

Os miúdos encostam-se à porta e o cheiro líquido dos seus choros espalha-se na sala como perfume. E enquanto me bates, puxas-me pelos cabelos, eu mando os miúdos calarem-se com uma voz que sai de uma boca com bolhas de sangue fervendo. As fotografias nas paredes enervam-se e desmaiam no chão com hematomas de cacos de vidros.

Bates-me e já nem choro, porque isso não é violência, mas sim uma forma de construir um lar firme,…

O fio da antena dobrando-se em jeito de teia de aranha, no meu corpo, com flacidez de um ginasta dói-me muito, mas não posso chorar porque sei e aprendi com meus pais que a paciência é o cimento que fortalece as paredes de um lar. Bates-me com toda força que desvia o sentido do sangue das tuas veias e a aliança sai-me do dedo e eu ponho-me a procurá-la debaixo da mesa, do fogão, nos pés das cortinas e tu não paras de bater-me; tacteio com as unhas todos os lados à procura da aliança, porque o inchaço fervente dos olhos torna-me cega; acho a aliança no meio de pratos partidos e volto a colocá-la no meu dedo, porque ainda somos um casal…

Bates-me com toda força que desvia o sentido do sangue das tuas veias e a aliança sai-me do dedo…

Já não tens cinto, as cadeiras todas desaparafusaram-se na minha cabeça, os punhos cerrados cansaram-se, os pontapés todos estão caídos como ramos secos, o fio da antena está em pedaços e descascado. E mesmo assim continuas batendo-me com restos de insultos que tiras debaixo do tapete e espetas-me agulhas de saliva e escarro na cara. Bastes-me porque as palavras não servem, não têm nenhum sentido quando se fortalece um lar.

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