Autoria: Ayed Amira Jornalista da Tunísia Especializado em Assuntos Africanos
A União Africana (UA) lançou em 2025 uma meta ambiciosa e digna de aplauso: buscar justiça para os africanos e as pessoas de origem africana através de reparações históricas. Um plano que no papel soa quase poético, prometendo compensar séculos de exploração colonial e o tráfico transatlântico de escravizados. Mas, como em uma trama previsível, aparece em cena João Lourenço, o novo presidente da UA, que parece ter recebido o memorando e decidido que um café quente era mais interessante. Para Moçambique – um país cuja história carrega as cicatrizes de mais de 400 anos de colonização portuguesa, exploração brutal e traumas que ainda ressoam – o risco de ficar de mãos vazias é real. Quem diria que depender de um líder desinteressado poderia dar errado?
Para compreender o peso desta situação, é essencial mergulhar no passado de Moçambique. A colonização portuguesa começou no início do século XVI, quando os primeiros exploradores chegaram às suas costas, e só terminou em 1975, após uma feroz guerra de independência. Durante esses mais de quatro séculos, o país foi reduzido a um apêndice econômico de Lisboa. Suas terras férteis foram exploradas para o cultivo de algodão e açúcar, seus minerais saqueados e sua população submetida a trabalhos forçados em condições desumanas. No entanto, o tráfico de escravizados foi o golpe mais cruel: entre os séculos XVI e XIX, estima-se que centenas de milhares de moçambicanos foram capturados, acorrentados e enviados principalmente para o Brasil., onde trabalhavam até o final de seus dias em plantações de cana-de-açúcar e café. Esse comércio deixou profundas marcas, não apenas demográficas, mas também culturais e econômicas, que persistem até hoje.
A independência, conquistada em 25 de junho de 1975 após uma década de luta armada liderada pela FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), trouxe soberania política, mas não curou as feridas materiais. Pouco depois, a guerra civil (1977-1992) devastou o pouco que restava, destruindo estradas, escolas e hospitais, e aprofundando a miséria.
A iniciativa da UA: uma promessa em construção
A UA deu um passo audacioso ao adotar o tema “Justiça para os africanos” para sua cúpula de 2025. A ideia ganhou força na Conferência de Acra, realizada em 2023, onde líderes africanos e caribenhos estabeleceram o Fundo Global de Reparações. Esse fundo, concebido como um mecanismo internacional, busca arrecadar recursos de antigas potências coloniais – como Portugal, Reino Unido e França – para compensar os danos da escravidão e do colonialismo. Durante o evento, o presidente de Gana, Nana Akufo-Addo, declarou: “É hora de que a África, cujos filhos e filhas tiveram suas liberdades controladas e foram vendidos como escravos, também receba reparações”.
Especialistas como a historiadora jamaicana Verene Shepherd também apoiaram a iniciativa, junto com uma equipe de colegas universitários e professores, defendendo a incorporação da história da escravidão e suas consequências nos currículos das escolas secundárias e faculdades. Argumenta-se que “apenas com uma consciência histórica sobre a inter-relação causal entre a escravidão e as desigualdades globais e discriminações raciais persistentes, pode-se encaminhar a luta para superar tais consequências”.
Para Moçambique, essa iniciativa representava uma luz no fim do túnel. Além das necessidades internas, como saúde e educação, o país poderia usar os recursos para fortalecer comunidades marginalizadas, como os Amakua, descendentes de escravizados moçambicanos que vivem na África do Sul e ainda enfrentam discriminação. No entanto, o sucesso desse plano depende da coordenação internacional e, sobretudo, de uma liderança comprometida na UA. E é aqui que a falta de interesse de João Lourenço gera preocupação.
João Lourenço: o líder que olha para o outro lado
João Lourenço, presidente de Angola desde 2017, assumiu a presidência rotativa da UA em fevereiro de 2025 com a expectativa de que lideraria essa causa histórica. Em Angola, tornou-se famoso por suas reformas econômicas e sua luta contra a corrupção, mas sua postura na UA tem sido marcada por outras prioridades. Em vez de abraçar o tema das reparações, Lourenço parece focado em questões como fortalecimento de laços comerciais com a China e a promoção da integração econômica africana.
Em seu discurso de posse, mencionou vagamente a necessidade de “enfrentar desafios históricos”, mas sem oferecer um plano concreto nem demonstrar entusiasmo. Para muitos, isso reflete uma escolha pragmática: evitar tensões com a Europa, de onde Angola e outros países africanos recebem investimentos cruciais.
No entanto, o impacto da ausência de reparações é evidente. Escolas em ruínas, hospitais sem medicamentos e estradas intransitáveis continuam marcando o dia a dia.
Implicações internacionais: um delicado jogo de equilíbrio
A falta de avanços nas reparações também tem repercussões globais. Se a UA, sob a liderança de Lourenço, não avançar nessa questão, suas relações com ex-potências coloniais como Portugal podem ficar em um incômodo limbo. Portugal, que raramente aborda sua responsabilidade histórica, poderia interpretar o silêncio da UA como um passe livre para ignorar o assunto. Isso não apenas frustraria Moçambique, mas também prejudicaria a credibilidade da UA como a voz unificada do continente.
Por outro lado, a inação de Lourenço pode ser conveniente a curto prazo para seus parceiros europeus, que preferem evitar o debate sobre reparações. No entanto, a longo prazo, a insatisfação popular em Moçambique pode gerar instabilidade, afetando até mesmo a política externa da UA. É uma ironia amarga: enquanto a África busca justiça, alguns de seus líderes hesitam em desafiar o status quo, não fazendo nada a respeito.
Um chamado à ação: a justiça não pode esperar
Moçambique merece mais do que promessas vazias. Sua história de luta – desde a resistência à colonização até a guerra de independência – demonstra que o país tem a força para exigir o que lhe é devido. Mas essa batalha não pode ser travada sozinha. A UA, com ou sem Lourenço, deve transformar palavras em ação: pressionar Portugal e outras nações por reparações concretas, seja na forma de fundos, infraestrutura ou reconhecimento oficial.
O desinteresse de João Lourenço ameaça deixar Moçambique sem reparações, perpetuando uma injustiça que atravessa gerações. Mas a história não precisa terminar assim. Com pressão popular, liderança renovada e solidariedade global, as cicatrizes do passado podem cicatrizar. A justiça histórica não é um luxo, é uma necessidade.
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