O Tribunal Administrativo da Cidade de Maputo (TACM) acaba de intimar o Gabinete de Implementação do Projecto Hidroeléctrico de Mphanda Nkuwa (GMNK) e o Ministério de Recursos Minerais e Energia (MIREME) para que forneçam as informações solicitadas pela associação moçambicana Justiça Ambiental (JA!).
Em sede do processo nº 63/2024, a JA! havia recorrido ao TACM solicitando a intimação do GMNK e do MIREME, para que fornecessem informações relativas à salvaguarda dos direitos fundamentais das comunidades locais afectadas pela implementação da controversa barragem de Mphanda Nkuwa, proposta para o Rio Zambeze na província de Tete.
Historial
A batalha pelo acesso a informações relacionadas com a mais recente etapa do projecto de Mphanda Nkuwa, vem desde 2019. Desde então, a JA! tem feito inúmeras e sucessivas tentativas de obter informações junto ao GMNK, por meio de cartas e até encontros, a respeito dos estudos que serão realizados e respectivos termos de referência, de que forma serão integradas novos componentes nos estudos (tendo em conta que questões como as mudanças climáticas, por exemplo, nunca foram contempladas em estudos anteriores), de que forma o projecto irá garantir que as vozes e os direitos das comunidades locais serão respeitados, entre várias outras questões. Apesar de uma aparente abertura para dialogar com a JA!, o GMNK sempre se limitou a responder de forma evasiva, superficial e sem disponibilizar nenhum dos documentos solicitados.
A 6 de Março de 2024, uma vez mais, a JA! solicitou formalmente informações sobre as medidas de protecção dos direitos fundamentais das comunidades locais. No entanto, a resposta do GMNK foi mais uma vez superficial, limitando-se a afirmar que o processo de actualização dos estudos técnicos estava em andamento (desculpa que nos tem sido servida desde Abril de 2021). O MIREME, por sua vez, nem respondeu à solicitação, ignorando completamente a carta enviada pela JA!.
Essa postura, tanto do GMNK quanto do MIREME, denota uma tentativa desastrosa de se eximir da responsabilidade de fornecer informações essenciais ao processo de implementação do projecto, além de impedir a devida consulta pública sobre a legalidade do projecto. As informações solicitadas deveriam estar disponíveis, pois serviriam para garantir a transparência, legalidade e acompanhamento preventivo dos impactos sobre os direitos das comunidades afectadas. O secretismo e obscurantismo que têm permeado este projecto desde o início (inclusive em etapas anteriores a 2018), além dos sérios riscos e impactos já identificados por inúmeros especialistas e organizações, levantam sérias dúvidas a respeito dos alegados benefícios apregoados pelo governo. Ao mesmo tempo, as comunidades locais vêm reportando situações de intimidações, ameaças, e até detenções arbitrárias contra aqueles que questionam o avanço do projecto. Como pode Mphanda Nkuwa realmente contribuir para desenvolver o país, se precisa de esconder os passos que dá e reprimir os principais afectados?
A 02 de Abril de 2024, a JA! decide escalar para o TACM, e submete um pedido para que este intime o GMNK a disponibilizar as informações solicitadas.
Os argumentos usados pelo Governo
Após ser notificado pelo tribunal, o GMNK alegou que as comunidades locais haviam sido envolvidas activamente, e que realiza encontros com as lideranças locais, com a sociedade civil e com os meios de comunicação para compartilhar informações sobre o projecto. O GMNK tentou ainda justificar a falta de informações alegando que os estudos ainda não haviam alcançado a fase de participação pública. No entanto, a alegação do GMNK de que a participação da comunidade se restringe ao processo de “audiência pública” – fase em que os estudos de viabilidade ambiental e social serão efectivamente apresentados – não reflecte um compromisso real com a consulta às comunidades, nem está em conformidade com a lei do procedimento administrativo, facto que o tribunal não hesitou em esclarecer. A Lei no 07/2014 é clara: as autoridades administrativas devem garantir a consulta pública e fornecer as informações solicitadas, salvo em casos de documentos classificados como secretos ou confidenciais, o que não é o caso.
Em relação ao MIREME, este limitou-se a reproduzir as alegações do GMNK e requereu o indeferimento do pedido de intimação, alegando que o pedido era falso, precipitado e presunçoso. Aparentemente, o MIREME acha ‘presunçoso’ que solicitemos informações públicas sobre um projecto financiado com dinheiro público, mas não acha presunçoso decidir o destino de comunidades inteiras sem consultá-las. Interessante definição de presunção!
Uma decisão histórica
O Tribunal Administrativo da Cidade de Maputo decidiu então dar razão à JA!, determinando que o GMNK e o MIREME devem fornecer as informações solicitadas, independentemente do estágio em que os estudos se encontram, no prazo de 10 dias. O não cumprimento dessa decisão poderá resultar em crime de desobediência qualificada, além de responsabilidades civil e disciplinar, conforme o artigo 110, nº 2, da mesma lei.
Esta decisão histórica do TACM representa um momento decisivo para a defesa dos direitos das comunidades locais que estão a ser ameaçadas pelo projecto da barragem de Mphanda Nkuwa, e para a luta pelo direito à informação no nosso país. A decisão reafirma o direito constitucional de acesso à informação sobre projectos que afectam directamente o ambiente e as comunidades. Ao ordenar que o GMNK e o MIREME forneçam as informações solicitadas, independentemente da fase em que se encontram os estudos, o tribunal estabelece que a transparência não pode ser adiada ou condicionada a cronogramas governamentais arbitrários.
Esta decisão cria também uma ferramenta legal que outras organizações da sociedade civil e/ou comunidades afectadas por megaprojectos poderão utilizar em casos semelhantes, invocando este precedente para exigir maior transparência.
“A JA! congratula-se com esta decisão, e reiteramos que nenhum projecto dito de desenvolvimento deverá avançar sem disponibilizar toda a informação necessária e requerida pelas comunidades locais e demais actores sociais, para que esta informação possa ser devidamente avaliada, debatida, e assim passemos a tomar melhores decisões de desenvolvimento. Esta decisão é, também, um grande passo rumo à materialização do direito a dizer NÃO a megaprojectos que não consigam comprovar os seus alegados benefícios, ou que estejam já implicados em violações de Direitos Humanos, como é o caso de Mphanda Nkuwa. Nada para nós sem nós!” (Comunicado)
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