Escrito por Miguel Luís
Milhões de olhos, uma só tenda. No interior, toneladas de papéis nas mesas; juízes e advogados com vestimentas pretas que lhes escondem os fatos cuidadosamente escolhidos; duas faixas encarnadas, uma para cada uma, por cima das vestimentas pretas que as procuradoras vestem; no vácuo retangular que fica entre as mesas uma dezena de pessoas que trajam uniformes de cor laranja; vários cabos eléctricos, câmaras e microfones. Milhões de olhos, uma só tenda.
Fora da tenda, o país, como sempre, aquece mais que o interior de uma panela sentada em cima de um par de lenhas. Milhões de olhos, uma só tenda. Mais uma vez andamos a brincar de faz contas e assim o país avança. Milhões de olhos, uma só tenda e mais um cidadão é empurrado para dentro de um carro contra a sua vontade. Sinceramente, um médico raptado em Maputo.
Milhões de olhos, uma só tenda.
O céu cinzento nesta tarde de domingo em que os meus olhos tremelicam. Pouca luz em Lisboa e os meus olhinhos secos a arderem como uma ferida a tomar um banho de álcool. Sinceramente, pouca luz na cidade, mas os olhos abertos e os aviões que desfilam no céu sempre a lembrarem-me o caminho para Moçambique. Por mais longe que seja, nunca se esquece o caminho de casa. Estamos distantes de casa, mas o país sempre a galgar-nos as escadas da memória. Por mais longe que se esteja nunca se consegue ignorar o que acontece em casa.
Muita violência e muito sangue derramado em Moçambique num curto espaço de tempo: 10 anos de guerra pela independência, 16 anos de guerra horrenda nos anos a seguir à independência, tantos anos do dito conflito político-militar que só muda de caras, mas continua a espalhar horror e, agora, Cabo Delgado. Pelo meio disso, como se não bastasse, uma indústria criminosa que aos olhos impávidos das autoridades sequestra e assassina cidadãos à luz do dia. Desta vez, um médico e a música continua a mesma de há aproximadamente cinco anos quando esta indústria começou a operar no país:
estamos a investigar.
Recentemente o Estado provou-nos que quando quer fazer algo faz. Após aproximadamente quatro anos de muito terror em Cabo Delgado, o Estado assumiu a seriedade do conflito, aliou-se a forças internacionais e está a conseguir restaurar a paz; após aproximadamente três anos de Mariano Nhongo a aterrorizar o Centro do país, foi-lhe dado um ultimato e cinco dias depois o homem foi morto. Quando o Estado tenciona olhar para a problemática dos sequestros e assassinatos? Quando o Estado tenciona restaurar a segurança dos seus cidadãos e de todos que vivem em Moçambique?
Muita violência e muito sangue derramado em Moçambique num curto espaço de tempo…
Um Estado que nada faz para restaurar a segurança dos seus cidadãos arrisca-se a ver a sua autoridade sequestrada e substituída pela barbárie e violência imposta pelos criminosos enquanto limpa o disco para voltar a tocar a mesma música
estamos a investigar.
Ainda bem que o colírio ajuda os meus olhos a resistirem para que possamos olhar para este papel e não deixar que o nosso silêncio seja a estufa onde cresce o medo e a indiferença de um país que merece enterrar a violência nas covas mais longínquas da sua memória colectiva e individual.
O céu muito cinzento nesta tarde de domingo em que os olhos tremelicam. Por mais longe que seja, nunca se esquece o caminho para casa. Estamos distantes de casa, mas o país sempre a galgar-nos as escadas da memória. Por mais longe que se esteja nunca se consegue ignorar o que acontece em casa e, juro palavra de honra, andamos a brincar de faz de contas. Um médico sequestrado. Milhões de olhos, uma só tenda.