A professora Beatriz pediu-nos para que escrevêssemos redacções sobre as profissões dos nossos pais. Uns escreveram sobre as profissões das mães porque não tinham pais e outros, que não tinham pais e nem mães, órgãos, tiveram de escrever sobre as profissões dos tios. E a professora Beatriz colocava um penso rápido na crosta da ferida dos órfãos “os nossos tios também são nossos pais”.
Havia, na turma, um menino chamado Dércio, cujo pai trabalhava numa fábrica de bolachas. Todos na turma, boquiabertos, ouvimos o Dércio lendo a sua redacção – todos queríamos ter um pai que trabalhasse numa casa de bolachas. “Belíssima redacção”, disse a professora Beatriz.
O Emanuel falou da mãe que era cozinheira nos caminhos-de-ferro, a Judith descreveu lindamente as actividades do pai que trabalhava na vidreira de Moçambique. Os órfãos foram os últimos a lerem as redacções, foi por uma questão de ordem porque até a professora disse “primeiros as redacções sobre os nossos pais, depois sobre as nossas mães e depois seguirão os outros”. Os outros eram os que descreviam as profissões dos tios.
Os órfãos da turma comiam-se os lábios quando falávamos dos nossos pais e mães. Sentia-lhe a dor de terem de cavar tios distantes, tios que nunca viram, tios que viviam ao deus-dará. E os tios, esfarpados, com estilhas de desemprego sobre a cabeça, surgiam descalços nas redacções com a humildade escondida com as mãos atrás das costas como porteiros de hotéis.
Nós que escrevemos sobre as profissões dos nossos pais e mães lemos as redacções logo no início da aula. Os órfãos só apresentaram as suas redacções depois do intervalo; era preciso separar os momentos e as redacções. E eles apresentavam as redacções em conjunto porque tinham algo em comum: não tinham pais.
Depois do intervalo, os órfãos, com as palavras mãe e pai parqueadas no fundo da boca, começaram com a leitura. Liam com demoradas pausas, porque deviam juntar as frases dispersas em seus cadernos antigos usados em anos anteriores. Pulavam de folha em folha juntando o sentindo das frases.
Um deles falou do tio que transportava enormes cestos no mercado de Xipamanine. Falou do seu pescoço que sempre encravava, do seu cabelo sempre bem alisado pelos cestos e não soube dizer ao certo a profissão do tio. E a professora Beatriz abriu parêntesis e ajudou o órfão: “é um carrinho humano de carga”.
Não era só a falta de pais que identificava os órfãos na turma. Ao recreio de lanche era possível vê-los comendo os botões das próprias camisas, humedecendo com a língua o creme colado nas embalagens de bolachas que o Dércio atirava ao lixo. Lanchávamos e eles sujavam-se reparando canetas velhas; estendidos no pátio corriam apenas para disputar a torneira quando era desalgemada pelo guarda. Água era suficiente para eles.
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