Cimeira de Paris não vai “resolver os problemas” de África

Paris acolhe esta terça-feira a Cimeira para o Financiamento das Economias Africanas que conta com a presença de 17 chefes de Estado africanos, líderes europeus e grandes instituições bancárias, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. A cimeira pretende criar um “pacote de ajuda massiva” avaliado em cerca 34 mil milhões de dólares para o continente africano, afectado pela pandemia de covid-19 e, ao mesmo tempo, lançar as bases para um novo ciclo de crescimento, apoiado no investimento do sector privado.

O antigo secretário executivo da Comissão Económica das Nações Unidas para África, Carlos Lopes, diz que estas medidas não vão resolver os problemas de fundo do continente, que precisaria de 200 mil milhões de dólares para poder voltar ao nível de actividade económica que existia antes da crise.

O economista guineense reconhece, no entanto, que a França foi o primeiro país a mostrar interesse em negociar uma solução para o problema das dívidas africanas com os países do G7. 

Qual é o objectivo da França ao organizar esta cimeira?

A França tem vindo a demonstrar uma certa originalidade em tentar resolver o problema da liquidez das economias africanas. Foi o primeiro país a falar – aos membros do G7 – da necessidade de se discutir a questão da dívida de uma forma mais abrangente a não limitada, digamos, àquelas que foram as medidas adoptadas até agora. São medidas demasiado tímidas e que não produzem nenhum resultado e que apenas adiam a dificuldade dos países africanos.

[A França] também foi um dos países que insistiu na necessidade do FMI mudar um pouco a sua rota e, em vez de somente falar do aumento dos programas actuais, fazer recurso aos seus Direitos de Tiragem Especial, que são direitos que normalmente estão relacionados com ajuda aos países em termos de liquidez e que se devem aplicar em tempos de crise. Os tempos de crise não podem ser maiores que aqueles que estamos a viver agora com a pandemia.

A França propõe uma ajuda massiva ao continente africano, fala nos instrumentos de troca que são conhecidos como os Direitos de Tiragem Especial. Como é que funcionam estes mecanismos?

É um mecanismo que todos os países membros do FMI tem direito e que é baseado no princípio que as reservas do FMI podem ser usadas para emitir liquidez em tempos de crise ou em situações excepcionais. Os países africanos normalmente têm usado uma parte dessa liquidez porque se encontram muitas vezes em situações de dificuldade, mas há uma reserva que permite fazer isso nas condições em que eram usados até agora, mas que em tempo de pandemia podem ser usados a 100%.

É isso que a França e muitos países africanos estão a propor que se faça. O princípio já foi adoptado de que vai haver, de facto, uma possibilidade de acesso aos Direitos de Tiragem Especial por todos os países do mundo, o que significa que temos uma liquidez de cerca de mais de 650 mil milhões de dólares para distribuir. Só que os países só podem aceder em função das suas economias.

Exactamente porque o FMI impõe algumas limitações. Que limitações são essas e como é possível contorná-las?

As limitações do FMI são as limitações da própria regra contratual que os países membros são obrigados a seguir. Portanto, os países africanos podem aceder ao máximo desses Direitos de Tiragem Especial, em função das suas economias -que neste caso seriam cerca de 34 mil milhões de dólares – o que é muito pouco para as suas necessidades e é muito pouco em relação àquilo que poderia ser o acesso se os outros países que não vão usar – porque os países ricos não precisam de usar este mecanismo – pusessem à disposição dos países africanos e dos outros países pobres os seus direitos.

O que é isso? Em termos práticos é justamente a medida que esta cimeira, convocada pelo Presidente Macron, está a persuadir um determinado número de países do G7 a cumprir. 

O objectivo é evitar o endividamento dos países africanos. A verdade é que ouvimos constantemente falar nas dificuldades que o continente tem em pagar as dívidas que contrai com os parceiros internacionais. O que é que tem falhado?

O que tem falhado é que qualquer economia só cresce com acesso ao crédito. Os países africanos são os países que têm menos acesso ao crédito porque os seus mercados financeiros são muito reduzidos, porque têm dificuldades através das notações que são feitas pelas agências de risco para aceder a capital comercial e porque os fundos que normalmente estavam disponíveis por parte das instituições financeiras que ajudam com empréstimos concessionais, como o FMI, Banco Mundial, Banco Africano de Desenvolvimento, etc, estão limitados e não são de natureza a poder satisfazer as necessidades de crescimento dos países africanos.

Só para dar uma ideia, o continente duplicou o seu PIB nos últimos 20 anos, mas os empréstimos concessionais não aumentaram para o dobro. Portanto, há um défice de financiamento das economias africanas e, por causa disso, existe uma grande dificuldade de poder ter acesso a capital. Então isto permite que aqueles que são os actores comerciais no mercado façam que esses empréstimos sejam de taxas de juro muitíssimo elevadas no momento em que no resto do mundo as taxas de juro estão muito baixas. Se um país como Portugal ou a Espanha fizer um empréstimo internacional vai pagar os juros até 1%. A Alemanha paga até juros negativos, a Grã-Bretanha paga juros negativos, enquanto um país africano típico vai pagar entre 7 e 9%. Portanto é uma diferença brutal e isso cria dificuldades de dívida.

E estes Direitos de Tiragem Especial poderão vir a dar credibilidade aos países africanos no mercado quando forem pedir um empréstimo?

Podem ajudar. É, de facto, um factor que pode aliviar um pouco as necessidades de liquidez dos países africanos, mas não é suficiente. A minha análise é de que os países africanos precisam de cerca de 200 mil milhões de dólares para estar a um nível de subsídio das suas economias em tempo de pandemia, digamos, médio em relação àquilo que os outros países fizeram e que continuam a alargar em termos de pacotes de estímulo às suas economias.

A diferença é que um país como os Estados Unidos ou um país como  a França, neste caso a União Europeia, podem imprimir a sua moeda – porque os seus bancos centrais imprimem a sua moeda, hoje em dia não é aquela impressão física, é através de mecanismos electrónicos, mecanismos de estímulo das economias que são mais sofisticados – enquanto que os países africanos não estão em condição de o fazer, precisamente porque as regras do FMI não toleram que esses países possam fazer isso porque há uma classificação de condicionalidades de que eles não conseguem libertar-se.

Portanto, é isto que requer um debate mais profundo que, esperemos, esta reunião de Paris dê um alento. Eu não creio que haja grandes expectativas que vá resolver o problema porque é um problema sistémico, mas que pelo menos dê um alento e que vá na boa direcção. 

Estes mecanismos de garantias bancárias, que vão permitir ao sector privado africano contrair empréstimos a taxas de juro normais e até financiar as importações, são boas notícias?

São boas notícias, mas não são suficientes. É importante que se dê uma nota positiva a estas medidas, mas também é importante que não se crie expectativas de que estas medidas vão resolver os problemas de fundo. Não vão resolver nem os problemas de acesso ao crédito – embora melhore um pouco a situação, mas vão continuar a existir grandes dificuldades – e também não vão resolver os problemas da pandemia porque aquilo que a África perdeu nos últimos 18 meses é muito significativo.

É a primeira recessão nos últimos 25 anos e ela é profunda e, portanto, nós para podermos voltar ao nível de actividade económica e de acesso a liquidez equivalente àquilo que existia antes da crise, deveríamos ter pelo menos 200 mil milhões de dólares. O que se está a falar é de 34 mil milhões de dólares que são dados directamente por esta medida do FMI e que a França quer aumentar oferecendo os seus próprios direitos – só a França tem 25 mil milhões de dólares – e tentando que outros países do porte da França façam o mesmo.

O crescimento a longo prazo do continente africano passa, inevitavelmente, pelo sector privado?

Passa. Eu não concebo como é que nós vamos poder sair da dependência das matérias-primas que representam cerca de 70% das exportações africanas – só o petróleo representa 40% das exportações africanas – sem nós fazermos uma industrialização. E para nós fazermos uma industrialização, nós não vamos fazer uma industrialização com o sector público. Tem que haver aqui um papel fundamental da promoção das grandes empresas, dos campeões nacionais do sector privado africano. 

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