Pela manhã, no bairro, ouvimos o senhor Salvador ungindo as paredes da sua casa de caniço com canhões de insultos: “sua desgraçada, sua vadia, sua suja”. E ao fundo ouvia-se, também, um pequeno charco de lágrimas deslizando no rosto da esposa. E no meio dessas lágrimas, a esposa levantava a sua espada: “desgraçada é a tua mãe que nem conhece o teu pai”.
Depois dos insultos, depois das acusações, as paredes de caniço estremeceram, o charco de lágrimas teve um vento de gritos e depois vimos a esposa do senhor Salvador surgindo com uma pedra de gelo encostada ao rosto, suponho que era para esfriar as lágrimas quentes que tinha, e exigiu partilha de bens.
Eles não tinham bens, mas começaram com a partilha. O casal começou a disputar o filho, um rapaz asmático que andava de peito levantado para melhor captar o ar. E no meio da disputa, o rapaz levantava cada vez mais os pulmões como se quisesse sobrevoar sobre toda aquela confusão. A esposa ficou com o rapaz. E por fim começaram a disputar a única herança que eles tinham: um candeeiro de petróleo com um vidro semi-partido.
Três meses depois, não disputaram o menino asmático quando morreu de cólera: o bairro fez contribuições e enterrou o rapaz. E onde quer que esteja, de certeza, continua com os pulmões levantados e faz caretas de um afogado quando respira. As roupas rasgadas das crianças do bairro, os sapatinhos sem solas, as meias com elásticos gastos, os brinquedos partidos e os sumos fora de prazo: tudo isso ia ao lixo, porque o asmático já tinha morrido.
O casal depois da disputa pelos bens, depois da separação, começou uma nova disputa no bairro: a disputa pelos restos de comida que deixávamos em sacos plásticos de lixo às portas das nossas casas.
Disputavam os restos que enviávamos às nossas covas numa dignidade impressionante. “Mesmo sem ti vivo, porque Deus está comigo”, dizia a senhora quando se cruzava com o antigo marido nos nossos quintais disputando restos de comida. E até hoje me pergunto se Deus sente prazer em estar com alguém que vive de resto!
Era um casal que comia aquilo que sobrava dos nossos arrotos, das nossas mesas e aquilo que não dávamos aos cães porque fazia mal. Uma vez, não me esqueço dessa, o casal discutiu à porta da casa dos meus pais. E, por eles tinham avançados conhecimentos de partilha de bens, o marido sentenciou: “a partir de hoje, ficas com o lixo das casas de lá de baixo: aqui nesta zona é tudo meu”.
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