Naquela sala, do Hospital José Macamo, éramos um rebanho de doentes comendo restos de sono e capim nas camas de lençóis sujos. Meu Deus, os enfermeiros surgiam arrastando tubos de soros e nós éramos o rebanho. Cada doente tinha o seu pastor que lhe espetava agulhas, que lhe corrigia o lençol no canto da cama, que lhe abria e fechava a pequena torneira do soro…
Naquela sala disputávamos as pequenas fatias de ar, os mais graves sugavam com enormes palhinhas o oxigénio aninhado em botijas metálicas. E os enfermeiros afogados em máscaras trocavam-nos a ração do soro como aves, entulhavam-nos os buracos das bocas com comprimidos e recolhiam a nossa urina em balões, o nosso sangue e o nosso escarro.
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Era um milagre acordar vivo ali. Primeiro foi o senhor Hugo, um mulato, que foi descoberto enterrado pela morte no meio dos lençóis, depois foi uma criança, de feridas nas orelhas, que foi evacuada pelos pés para a morgue com a língua de fora como uma cabra. As moscas vinham à procura das feridas da menina, todavia ela já não lá estava. Passava a sua infância numa gaveta da morgue.
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Um dia, um senhor magro e de cabelos pretos tropeçando em fios brancos entrou na sala com um enxame de senhores de fatos. Era Pascoal Mocumbi. Foi passeando de cama em cama, examinando os processos e fazendo levantamento de sintomas como os quisesse levar à sua casa.
Tão simpático, tão magro: Pascoal Mocumbi. Eu ainda era criança, mas não me esqueço dos seus dentes empenados de onde surgia um sorriso preguiçoso que se arrastava nos lábios. Com uma enorme corda de elegância disfarçada em gravata no pescoço, Pascoal Mocumbi, abriu-me um dos olhos com o saca-rolhas dos dedos e eu chorei porque temia que aquele gigante me comesse o olho inteiro. Examinou-me as manchas dos olhos e seguiu para outros doentes.
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E o enxame de senhores de fatos seguia os passos de Pascoal Mocumbi; uma senhora gorda espetava-se os dentes com uma tampa BIC e entornava os óculos numa agenda para anotar os nossos gemidos; e Pascoal Mocumbi encheu a sala toda com um fumo de esperança dizendo “amanhã vocês sairão daqui”; ele repetia isso sem parar; era como se pulverizasse a sala das mortes e da desesperança. “Amanhã vocês sairão daqui”. Depois de circular de cama em cama, como uma servente recolhendo lençóis para o tanque, Pascoal Mocumbi saiu da sala e o enxame de fatos foi-se arrastando atrás de si.
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Claro que ficámos todos ali a disputar aquela frase como cães lutando por um osso. “Amanhã vocês sairão daqui”. E aos poucos fomos saindo com a sabotagem da doença: uns para as gavetas da morgue e outros foram carregados por ambulâncias para esperar pela morte em outros hospitais. Mas todos saímos. Todos saímos.
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