O maior exportador de energia do mundo e a segunda maior economia mundial estão a acertar o passo contra um inimigo comum: o dólar americano. E têm estado a ganhar seguidores, incluindo alguns de peso, como o Brasil, a Arábia Saudita, a Índia e os países da ASEAN.
A primeira alternativa da Rússia ao dólar foi o euro, em tempos de maior proximidade com a União Europeia. As sanções impostas pela invasão da Ucrânia e as crescentes dificuldades económicas fizeram-na, entretanto, virar-se para uma nova alternativa: a moeda chinesa.
Desde a quebra de relações com a União Europeia há um ano, a Rússia assumiu o mercado chinês como preferencial para as suas exportações energéticas, as quais têm estado a ser pagas em yuan chineses, com reflexos na sua reserva soberana. Também as empresas russas têm pedido empréstimos em yuan e as famílias começaram a fazer poupanças na mesma moeda.
Segundo a RTP, na recente visita do presidente chinês a Moscovo, Xi Jinping e o seu homólogo russo, Vladimir Putin, assinaram por isso acordos de parceria aprofundada entre os dois países.
O impacto ainda mal se sente, mas Pequim tem acolhido a deriva monetária russa de braços abertos. Vai ao encontro da sua ofensiva paulatina, mas até agora falhada, de afirmar como divisa internacional o seu renminbi (o nome oficial da moeda chinesa, que tem no yuan a unidade), roubando espaço à rival norte-americana.
Actualmente, 66 por cento das transacções comerciais em todo o mundo realizam-se em dólares, contra uns meros quatro por cento em yuan, apesar do peso chinês na produção e na circulação mundiais de bens e de mercadorias.
Também as reservas em moeda estrangeira de 60 por cento dos bancos mundiais são preferencialmente em dólares, comparando com 20 por cento em euros e seis por cento em ienes japoneses. Mesmo sendo a segunda economia mundial, Pequim praticamente não tem peso nesta esfera.
Ventos contra o dólar
Não é a primeira vez que a China tenta minar a hegemonia mundial do dólar. Desta feita parece, contudo, estar a ter mais sucesso e a ganhar adeptos.
No final de Março ocorreu mesmo uma catadupa de decisões e debates fulcrais.
À margem da visita de Xi a Putin, dias 21 e 22, além da aproximação comercial à China, a Rússia comprometeu-se a usar o yuan e o rublo nas suas transacções com diversos países da Ásia, de África e da América Latina, onde o dólar escasseie.
Uma semana depois, dia 28, a francesa Total Energies e a chinesa Cnooc, ambas do sector energético, assinaram contratos de venda de gás liquefeito igualmente em moeda chinesa, à margem do dólar. Mesmo de pequena dimensão, esta foi uma vitória para o renminbi.
No mesmo dia, do outro lado do globo, os ministros das Finanças da ASEAN (Associação das Nações do Sudoeste Asiático) colocaram na agenda de discussões o debate sobre a Transacção em Moeda Local, um programa que propõe usar as moedas locais nas transacções financeiras entre os seus membros em detrimento não só do dólar americano, mas também do euro, do iene e da libra esterlina.
Também a Indonésia propôs na altura o abandono dos pagamentos por Visa e por Mastercard nas nações da área, para evitar repercussões das sanções à Rússia.
Dia 29, o Brasil, a maior economia da América do Sul, anunciou que todas as suas transacções bilaterais com a China iriam passar a fazer-se em reais e em yuan, emancipando um comércio avaliado em 150 mil milhões de dólares da influência norte-americana.
Ao mesmo tempo, a Arábia Saudita tem estado em conversações com a China para ser paga em yuan pelo seu petróleo, tendo admitido progressos substanciais nas últimas semanas.
A Índia resolveu por seu lado adoptar a estratégia de, num mundo multipolar, a boa escolha ser igualmente diversificar a moeda de troca. Nova Deli já estabeleceu com Moscovo um acordo para comerciar em rublos e rupias, e tem recusado seguir a imposição de sanções ocidentais devido à invasão da Ucrânia.
A grande novidade tem sido a tendência de desdolarização, como já é chamada, dos mercados.
Tanto Pequim como Moscovo foram pioneiras, tendo começado já em 2018 a reduzir o peso do dólar nas suas reservas cambiais, transferindo para o euro a maioria das suas transacções, um cenário agora igualmente em declínio.
O Kremlin está agora a encarar também a possibilidade de usar rublos e liras turcas no comércio com a Turquia.
O Global Times chinês, porta-voz oficial do governo de Pequim, ao assinalar dia 29 o acordo entre Brasil e China, saudou “o fim do domínio do dólar”, defendendo que “cada sistema monetário hegemónico acaba por colapsar”.
No caso do dólar, afirmou o mesmo editorial, esse cenário será mesmo urgente.
“Com o sistema Bretton Woods e o petrodólar, o dólar evoluiu de um veículo dominante de pagamento e de investimento para uma ferramenta de chantagem e coação política”, acusou. “Com a hegemonia do dólar, os EUA podem não apenas impor arbitrariamente sanções unilaterais a outros países, mas igualmente recolher riqueza global e exportar os seus próprios riscos para o resto do mundo, através de políticas monetárias irresponsáveis”, acrescentou.
Como exemplo flagrante do dólar ser usado como “ferramenta de ganhos políticos”, o mesmo jornal deu o corte da conexão dos bancos russos ao sistema SWIFT, “um alerta para o resto do mundo”.
Campainhas nos EUA
Nada disto está a passar despercebido em terras do Tio Sam. O especialista Fareed Zakaria escrevia recentemente no Washington Post que o dólar, “o nosso super-poder”, está sob ameaça de uma “tempestade perfeita” criada por Moscovo e por Pequim.
“O dólar é o nosso super-poder. Dá a Washington força económica e política incomparável”, referiu. “Quando Washington gasta livremente pode ter a certeza de que a sua dívida, geralmente sob a forma de títulos do Tesouro, será comprada pelo resto do mundo”, sublinhou.
A actual tendência só irá piorar a perda de influência do dólar que se tem vindo a fazer sentir, acrescentou, lembrando que a actual parcela do dólar inferior a 60 por cento nas reservas globais dos bancos centrais,é inferior aos 70 por cento registados “há 20 anos”. “E continua a descer”, lembrou.
“Europeus e chineses estão a tentar desenvolver sistemas de pagamentos internacionais fora do sistema SWIFT dominado pelo dólar” e as próprias criptomoedas são uma ameaça, sublinhou ainda.
Gillian Tett, editora do Financial Times, admitia por seu lado que “alguns sinais” parecem indicar que o domínio do dólar no mercado da dívida “está a acabar”, até para reduzir a exposição aos “activos tóxicos norte-americanos”.
A recente “turbulência bancária nos EUA”, a “inflação” e a “batalha iminente pelo tecto da dívida” são factores apontados por Tett para que os activos baseados no dólar estejam a tornar-se “menos atractivos”, até à luz da reunião dos ministros da ASEAN.
Vantagens do dólar vão “manter-se”
Apesar dos alertas, nem todos estão preocupados. Um deles é o economista e Prémio Nobel Paul Krugman, que vê no dólar uma “fortaleza”.
No New York Times, Krugman enumerou as vantagens que têm mantido o domínio da moeda norte-americana. Por um lado a “facilidade” de transaccionar em dólares, por estes serem tão comuns a nível global, como a língua inglesa.
A força da moeda baseia-se por outro lado na enorme economia americana, com um vasto e sofisticado “mercado de capitais”, “sem o tipo de controlo de capitais que possa impedir as pessoas de acederem aos seus fundos”.
São “fundamentos” que descartam “de imediato o yuan como alternativa ao dólar, porque a China detém o controlo de capital e parece improvável que abra mão dele”, frisou ainda o Prémio Nobel.
Uma das críticas feitas a Pequim é precisamente a forma como intervém no yuan, mantendo-o mais fraco do que o dólar para favorecer as suas exportações.
Mundo em mudança
A tendência para tirar o dólar das transacções globais parece confinar-se sobretudo ao mercado energético, para já, apesar do exemplo do Brasil e, até certo ponto, da Rússia.
Mas, se o governo do presidente Lula da Silva vê apenas manhãs que cantam nas novas relações com a China, a Rússia mantém alguma prudência quanto à dependência de Pequim e a sua aproximação ao yuan é fruto da pressão negativa ocidental mais do que de uma escolha estratégica.
“Neste momento é a única opção racional para a Rússia e para Putin”, afirmou Alexander Gabuev, parceiro sénior do Carnegie Endowment for International Peace, inferindo que outras circunstâncias poderão ditar diferentes opções. “Se depender do rinminbi é a linha de salvação que ajudar a estar menos exposto e menos dependente de moedas hostis, então esse é o caminho a seguir”, considerou.
O exemplo russo e a recente fragilidade revelada pelo sector financeiro suíço convidam os governos e as elites, sobretudo da China e da Ásia, a admitir os riscos de virem a ver as suas contas congeladas ou mesmo sugadas por uma crise financeira, numa reflexão séria que poderá, também nas finanças, mudar em breve o mundo tal como o conhecemos.
Tal não significa necessariamente que Pequim vença esta guerra cambial. As suas atitudes autoritárias não instilam confiança nos investidores, o que torna o yuan uma fraca alternativa enquanto moeda de reserva e retira ao Banco Central chinês as credenciais para assumir um papel decisivo além das suas fronteiras nacionais.
Um eventual afastamento da hegemonia do dólar poderá acabar por revelar-se para a China uma vitória de Pirro.
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