As manobras militares conjuntas que decorrem ao largo da costa oriental da África do Sul entre as marinhas russa, chinesa e sul-africana denunciam a “inconsistência” do não-alinhamento reiterado por Pretória em relação à guerra da Ucrânia, advertem analistas.
Analistas consideram que as manobras militares conjuntas que decorrem ao largo da costa oriental da África do Sul entre as marinhas russa, chinesa e sul-africana denunciam a “inconsistência” do não-alinhamento reiterado por Pretória em relação à guerra da Ucrânia.
“A África do Sul passou de uma espécie de posição não-intervencionista para estar muito próxima de apoiar o comportamento russo na Ucrânia”, considera Tom Lodge, especialista em política africana e professor de Estudos de Paz e Conflitos, na Universidade de Limerick, Irlanda, em declarações à Lusa.
Segundo o investigador, “quando se começa a ter manobras militares conjuntas ao largo da costa da África Oriental com os russos – o exercício naval de dez dias entre as três armadas, que decorre desde a passada sexta-feira — a conversa dos sul-africanos quando se dizem não-alinhados parece inconsistente”.
“Todos os países conduzem exercícios militares com amigos em todo o mundo. É o curso natural das relações”, afirmou a chefe da diplomacia sul-africana, Naledi Pandor, quando em 23 de Janeiro último recebeu em Pretória o seu homólogo russo, Sergei Lavrov.
Exercícios navais coincidem com o primeiro aniversário da guerra
Os 10 dias de exercícios, denominados Mosi II, coincidem com o primeiro aniversário da invasão russa da Ucrânia, no dia 24 de Fevereiro de 2022, calendário que é “demasiado simbólico” – na apreciação de Paul Nantulya, investigador do Africa Center for Strategic Studies (ACSS), um instituto de análise em Washington financiado pelo Congresso norte-americano.
“Não acredito que este calendário tenha sido escolhido casualmente”, considera também Tom Lodge. “Surpreende-me que não tenha atraído mais comentários e mais atenção do que tem”, acrescenta o professor da universidade irlandesa.
Esta é a segunda vez que decorrem exercícios navais entre os três países – o primeiro, Mosi I, teve lugar em 2019 – mas no contexto internacional em que se realizam assumem importância e significado distintos para o mundo e para cada um dos participantes.
O Mosi II, de acordo com alguns analistas internacionais, envia a mensagem clara de que, numa altura em que a Rússia é alvo de um conjunto largo de sanções pela violação de algumas das mais importantes convenções internacionais, três dos cinco países-membros dos BRICS — Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — empenham-se em mostrar que a organização está bem de saúde e continua apostada em desenvolver o seu músculo de defesa e segurança.
Esta corrente de análise considera que o agrupamento económico das potências emergentes, num novo mundo geopolítico que aparentemente está a despontar, lança desafios importantes às estruturas de governação global lideradas pelos Estados Unidos e pela Europa.
A África do Sul assumiu a 1 de Janeiro a presidência dos BRICS e já anunciou que espera a presença do Presidente russo, Vladimir Putin, na cimeira do bloco em Agosto próximo, um mês depois da segunda cimeira Rússia-África, agendada para Julho em Moscovo.
Quanto aos interesses individuais de cada um dos participantes nos exercícios, numa síntese de Paul Nantulya, “a Rússia está a tentar tranquilizar os países africanos e dizer-lhes que ainda podem trabalhar com Moscovo em matéria de defesa; a China aproveita a oportunidade para mostrar a África que a cooperação militar está de novo na ordem do dia; e a África do Sul demonstra ao continente que pode juntar duas super-potências, o que é também uma mensagem muito poderosa”.
Por outro lado, se a China demonstra perante o mundo que “dá à Rússia uma abertura no quadro do sistema internacional, Moscovo mostra também que, independentemente das sanções internacionais que enfrenta, a sua capacidade de desenvolver operações de treino militar com a China e a África do Sul não foi diminuída”, deixando ainda claro junto da comunidade internacional que “mantém o controlo das suas relações e diplomacia internacionais”, sublinha Nantulya.
Finalmente, a China tem, com estas manobras militares, “uma oportunidade de dizer cara-a-cara aos países africanos que a cooperação militar está de volta e esta é uma mensagem popular, porque os países africanos têm vindo a pressionar Pequim nesse sentido”, diz o investigador do ACSS.
Acresce neste aspecto que “Pequim encontra mais uma via para reforçar as suas já fortes relações com a África do Sul”, da qual a China é o principal parceiro comercial, “mas também com a África Austral, porque 34% dos compromissos militares chineses em África estão nessa sub-região”, prossegue Nantulya.
Dos três participantes nas manobras, a China é quem pode retirar mais proveito, na opinião do investigador. “A Rússia era até agora o maior exportador de armas para África, seguida pelos Estados Unidos e pelos países europeus e só depois pela China, que tem cerca de 17% do mercado”, assinala.
Testes em navios de guerra envolvem mísseis
“Este número deve agora subir”, não só porque a indústria de defesa russa está concentrada no esforço de guerra na Ucrânia, como porque “muitos dos fundos de defesa russos foram alvo de sanções pelos países ocidentais e pelas Nações Unidas, deixando de repente os países africanos sem créditos para importar armas russas”, acrescenta.
“Penso que muitos destes programas serão agora direccionados para a China, que deverá ser a principal beneficiada com a situação”, conclui.
A participação no Mosi II de uma fragata russa, a Almirante Gorshkov, armada com os mais recentes mísseis hipersónicos Zircon, uma arma que a Rússia diz poder penetrar qualquer defesa anti-míssil e atingir alvos no mar e em terra, é outro dos simbolismos fortes dos exercícios.
O navio de guerra deverá testar um míssil Zircon durante os exercícios navais conjuntos, de acordo com a agência noticiosa estatal russa Tass. O teste, que será eventualmente realizado esta quarta-feira, será o primeiro lançamento do míssil num exercício internacional, antes de o navio regressar ao Mar Negro para integrar a força naval russa envolvida na guerra da Ucrânia.
“Esta é uma arma muito violenta, que a Rússia tem vindo a utilizar na Ucrânia, e o facto do navio de guerra russo a transportar é também uma mensagem que Moscovo está a tentar enviar ao Ocidente e à Ucrânia”, sublinha Paul Nantulya, citado pela Lusa e pelo jornal Expresso.
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