Termina mais um dia, a suposta greve consegui abortar e agora é hora de regressar ao meu bairro. Vou despir agora, como uma cobra, a minha pele de polícia, coloca-la num cabide de arame e esconde-la no guarda-fato do comando.
Vou passar ao colega da noite o expediente de dois grevistas que algemei na Avenida de Angola quando queimavam dois pneus. O que Angola não faz por nós? Escutamos música angolana, cobiçamos o sucesso dos angolanos, decretamos cinco dias de luto pela morte do ex-presidente angolano e mesmo a suposta greve deu sinais na Avenida de Angola. No fundo, nosso sonho é também angolano.
Não há chapas para chegar à casa, mas me vou pendurar num “my love”, algemar-me no ombro de um passageiro sentado para não cair e nunca perder o equilíbrio. Pelo menos ainda tenho o “my love” para deixar-me no bairro. Acho que a última greve dos chapeiros foi importante.
No bairro, sem o meu uniforme, vou reclamar do custo de vida, do combustível, do preço do chapa, do quilo de açúcar, do preço do óleo que está sempre a escorregar, porque também sou cidadão. Amanhã, na esquina da Eduardo Mondlane, vou caçar estrangeiros e exigir-lhes DIRE, vou arrancar moedas em nome do BI e, ali, na Belita, vou encostar os drogadinhos que fazem leilões de peças no Mercado Estrela. É a única forma de engordar as migalhas que ganho como salário, entendam isso…
Não me venham com teorias de honestidade aqui, meus caros. A vida está difícil. Vocês sabem quanto tive de pagar para entrar à polícia? Vocês sabem quanto tive de pagar para não ser afecto fora da cidade? Vocês sabem o preço que um dia pagarei por alugar a minha arma aos miúdos que fazem estragos nos bairros? Vocês sabem quantos chapas tive de pagar para ser o primeiro à rua antes desses grevistas e vândalos?
Abortei a suposta greve, mas não interrompi a gestação infinita dos preços. Claro que às vezes apetece-me disparar as minhas balas de borracha e o meu gás lacrimogéneo contra aqueles que mandam em mim, mas não faço tudo isso pela lei e ordem.
Vocês podem não saber, mas eu estou em greve há anos contra esse governo. Nunca sou patenteado e nunca subo de escalão. Sou sempre obrigado a encostar o povo a que pertenço, mas quando o assunto são raptos, o meu chefe é claro: “não te metas nisso, isso é coisa dos grandes. Vai encostar o povo”.
Termina mais um dia, a suposta greve consegui abortar, mas não conseguirei abortar a pergunta da minha esposa quando chegar à casa: “amor, o povo tem ou não tem razão. A vida não está cara?”.
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