Ainda tenho na memória imagens bem vivas de crianças daquele infantário; crianças sujas, acorrentadas em cadeiras de rodas como bichos, sem mínima força de levar uma colher de sopa à boca e outras ardendo em pijamas humedecidos de urina.
Não me esqueço de uma das funcionárias que chamava as crianças com nomes de animais; existia o leão, a zebra, o tigre e o macaco era um adolescente que possuído, a todo instante, por ataques de epilepsia saltitava de cadeira em cadeira e atirava-se ao chão para devorar a sua própria língua.
Ainda tenho na memória imagens bem vivas de crianças daquele infantário
Um ministério organizou uma tarde de Natal para essas crianças. Nós, jornalistas, tínhamos sido entulhados numa sala e seríamos atirados para a arena, como touros, assim que o senhor ministro chegasse. Ficámos na pequena sala suando e babando de calor e de tempos a tempos testávamos os chifres das nossas canetas porque éramos touros…
Quando o senhor ministro chegou, ouvimos pelo rosnar dos carros e pelos passos apressados que se instalaram no infantário. Uma das funcionárias do infantário tirou um molho de chave do seu avental, levou minutos experimentando uma a uma e quando descobriu a chave certa, abriu-nos a porta e nós corremos atrás do senhor ministro porque éramos touros.
Nós, jornalistas, tínhamos sido entulhados numa sala e seríamos atirados para a arena
O tal senhor ministro discursou, deu abraços a duas crianças, as únicas que estavam limpas, que sorriam sem parar e mexiam suas cabecinhas arrendadas e acidentadas por microcefalia. As funcionárias do infantário cantavam e outras controlavam com correntes e varas outras crianças que, como bichos, queriam atirar-se sobre o ministro e devorá-lo. Lentamente, o ministro foi passeando pelo infantário, conversando com a directora e fazendo perguntas parvas. Perguntou, por exemplo, se o infantário já tinha pensado em abrir um poço. Não que o infantário tivesse problemas de água, talvez um poço para os bichos do infantário, um a um, atirassem-se e acabaram com tudo.
O tal senhor ministro discursou, deu abraços a duas crianças, as únicas que estavam limpas
Tomou-se a sopa de legumes, o infantário cheio de balões, explodiu de alegria. O ministro quando se preparava para oferecer presentes aos catraios, começou a murmurar com o seu rebanho de assessores. Já tinha colado a barba de Pai Natal e a sua saqueta de presentes, vazia, parecia que lhe irritava. Os murmúrios nunca mais terminavam, mas soubemos, no mesmo instante, que os presentes não tinham chegado ao infantário.
Os presentes que o ministro devia oferecer às crianças do infantário tinham sido desviados no seu gabinete. Os assessores disparavam-se com dedos de acusações. A barba do Pai Natal do senhor ministro começou a murchar, a sua saqueta de presentes encheu-se de gritos e insultos e as crianças sujas, organizadas em uma infinita fila, estendiam as mãozinhas para os presentes desviados.
Os presentes que o ministro devia oferecer às crianças do infantário tinham sido desviados no seu gabinete.
Não me esqueço desse Natal, porque depois o ministro tirou a barba de Pai Natal, meteu-se na viatura e saiu voando. A sopa acabou, as crianças voltaram novamente aos seus calabouços sorrindo porque pelo menos tinham visto o Pai Natal cheio de nada.