Diversas vezes almocei numa dessas viaturas ali, ao pé do Jardim Tunduro. É barato. A dona da viatura, uma senhora gorda com enormes copas de coqueiros nas pestanas, levava séculos para estacionar a viatura, era preciso ter cuidado com o carril nas panelas destapadas, era preciso colocar metade da viatura na calçada do passeio e a outra metade na estrada mas sem entornar os ossos que flutuavam na feijoada.
Sempre que fosse ali almoçar, depois da uma da tarde, uma das moças que temperava a salada com a mão cheia de unhas sujas de verniz, com a garrafinha de óleo presa na axila, anunciava para a dona do pequeno restaurante: “boss, o mecânico já chegou”. E a senhora pastoreava o tal mecânico com o indicador para dentro da viatura. O tal mecânico era um homem alto, sempre em macacão sujo e obedecia como um acólito no altar: dobrava-se e metia-se dentro da viatura. Metia-se dentro da viatura, mas ficava, cá fora, durante horas, o cheiro azedo que as chaminés dos seus sovacos soltavam.
Eu não entendia o trabalho que aquele mecânico fazia dentro do carro, no entanto, todos os dias não faltava o “boss, o mecânico já chegou”. Recordo-me de um dia, um dia qualquer, em que o tal mecânico mexeu no molho de chaves, mexeu nos pedais do carro e o restaurante saiu andando; o carril de amendoim foi fazendo passadeiras na estrada, o arroz tapando as covas da estrada e a sopa nem parava de jorrar nos “STOP”; a senhora correndo com uma colher de pau seguiu o restaurante que encalhou num semáforo.
E um dia, decidi espreitar pelo retrovisor os trabalhos do mecânico dentro do carro. E afinal não era um mecânico, era um homem pobre, humilde e húmido dentro do seu macacão sujo, que morava na rua, que comia como um cão os restos dos nossos pratos.
Talvez o chamavam mecânico porque consertava a sua fome com as peças inúteis que deixávamos nos pratos. Foi triste ver o homem, dentro da viatura, rebolando debaixo do que deixávamos, molhava-se de saliva de felicidade debaixo de restos. Pescava grãos de arroz em todos os pratos, lambia até as nossas colheres como um mecânico puxando gasolina com a boca e no fim saía totalmente sujo de felicidade da viatura, esfregando a língua nos dedos e fazia uma vénia à dona do carro: “até amanhã, dona Jenny”.
O que não falta na cidade de Maputo é gente que vive de restos, gente que parece que usa lupas nos olhos, pois vê coisas inteiras e enormes nos restos.
E passei, a partir daquele dia, a comer naquele restaurante contando com o mecânico. Comia e deixava mais restos para o mecânico, era como se o ouvisse, a cada colherada minha, pedindo-me: “deixa um pouco de carne nesse osso, meu rapaz”.
Aprendi com esse mecânico que os restos também reparam e consertam falhas no estômago. Hoje é segunda-feira e se estivesse em Maputo ouviria “boss, o mecânico já chegou”. E veria pelo retrovisor um mecânico lutando com uma enorme chave de osso e arrotando sobre restos.
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