Trilogia “As Areias do Imperador” – Análise e reflexões

Trilogia “As Areias do Imperador” – Análise e reflexões

Autor: Vicente Sitoe

Três semanas depois de terminar “As Areias do Imperador”, ainda não encontrei sossego. A leitura chegou ao fim, mas dentro de mim a história ainda não acabou. Os três volumes continuam a habitar-me com um peso doce e uma inquietação permanente. Sinto uma avalanche de emoções que não consigo nomear por inteiro. E quando um livro provoca este tipo de ressonância emocional e intelectual, sei que não li apenas um bom livro — fui transformado por uma grande obra.

Já estive diante de Mia Couto algumas vezes. E conheço pessoas próximas a ele. Se quisesse, poderia entregar-lhe estas impressões de modo directo, de mão em mão. Mas não quero fazê-lo assim. Esta leitura é maior do que a troca pessoal. Ela pede algo mais livre, mais público, quase ritual. Por isso escrevo esta carta aberta, com a esperança de que, pela via natural das coisas, esta mensagem encontre o seu caminho até ao autor.

A trilogia — Mulheres de Cinza (2015), A Espada e a Azagaia (2016) e O Bebedor de Horizontes (2017) — entrou na minha vida como quem visita uma terra ancestral há muito esquecida, mas que de súbito volta a pulsar debaixo dos pés. A narrativa reconstrói os últimos dias do Estado de Gaza e a figura do imperador Ngungunyane não apenas como personagem histórica, mas como símbolo de um tempo, de uma luta, de uma dor colectiva que ainda hoje vive connosco. A forma como Mia Couto entrelaça a ficção com o real — citando documentos, cartas, testemunhos e imagens verdadeiras — confere uma espessura rara ao texto. Senti-me, por vezes, a ler um romance histórico; noutras, um diário íntimo; noutras ainda, uma espécie de liturgia onde o real e o imaginado se confundem, não para nos iludir, mas para nos revelar um passado real desconhecido.

Talvez por isso esta obra me tenha lembrado Crime e Castigo, de Dostoiévski — não pela semelhança da trama, mas pela profundidade moral, pela densidade psicológica, pela forma como os personagens lutam com dilemas que transcendem as suas épocas. A Imani, narradora e coração da trilogia, é uma dessas personagens inesquecíveis. No início, jovem e cheia de esperança, crê que o amor e a assimilação cultural lhe trarão um destino diferente dos demais pretos. Mas o mundo era outro. E logo se percebe que, naquele tempo, não se misturavam assuntos — muito menos raças. A sua dor silenciosa atravessa o livro, transformando-se num espelho da dor de um povo.

Quando me faltavam apenas dois capítulos para terminar a trilogia, interrompi a leitura. Sabia que a morte do imperador, inevitável e já conhecida, seria contada nas páginas seguintes.

Quando me faltavam apenas dois capítulos para terminar a trilogia, interrompi a leitura. Sabia que a morte do imperador, inevitável e já conhecida, seria contada nas páginas seguintes. Ainda assim, eu não estava preparado para esse fim. Durante dias, deixei o livro repousar. Fiquei com pena de continuar. Como quem não quer testemunhar a morte de alguém que, de algum modo, passou a fazer parte da família. Mas retomei. E, de facto, a morte chegou. No entanto, confesso que foi ali o único momento em que me senti levemente decepcionado pelo autor. Não pelas escolhas narrativas, mas porque me faltaram os detalhes — as causas, o modo, as circunstâncias da sua partida. Essa ausência, contudo, foi rapidamente ofuscada por uma surpresa que me emocionou ainda mais: o facto de Imani, já velha, ainda estar viva no momento da independência nacional. Esse pormenor mudou tudo. Trouxe-me a consciência de que esta não é apenas uma história sobre o passado: é um relato do nosso presente recente. Uma memória ainda viva. Não estamos a falar de episódios distantes. Estamos a falar de nós.

Ao fechar o último volume, fui desafiado por algo inesperado: uma série de fotografias reais — dos personagens, dos lugares por onde passaram em Portugal, das cartas e manuscritos. Aquilo rompeu o tecido da ficção e empurrou-me de novo para a realidade. Fiquei a perguntar-me: como é que o autor teve acesso a tanta documentação? Como chegou a esses registos, a essas vozes do passado que julgava estarem trancadas em arquivos inatingíveis? Há aqui um trabalho de escavação profunda, quase arqueológica, que merece ser louvado. Um gesto de resgate histórico que não está ao alcance de qualquer escritor. Só alguém com a sensibilidade de Mia Couto seria capaz de transformar o pó dos arquivos numa linguagem viva, pulsante, poética.

a urna devolvida por Portugal com as supostas ossadas do imperador, trazia mesmo ossos ou apenas areia?

E mesmo depois de virar a última página, não me abandona a pergunta que nos é colocada logo no primeiro livro: a urna devolvida por Portugal com as supostas ossadas do imperador, trazia mesmo ossos ou apenas areia? Alguém ousou abrir para confirmar? A ideia de que o símbolo maior da resistência africana possa ter regressado à terra apenas como poeira inquieta-me profundamente. E talvez esse seja o maior feito desta trilogia: deixar-nos perguntas maiores do que as respostas. Feridas maiores do que os curativos.

Terminei com a firme convicção de que esta trilogia precisa de um quarto livro

Mas não é só isso que falta. Terminei com a firme convicção de que esta trilogia precisa de um quarto livro, deixando automaticamente de ser uma trilogia. Falta saber mais sobre o fim de Imani — terá ela morrido anónima e cansada, ou recebeu algum reconhecimento pelo seu papel? Falta saber mais sobre a família de Ngungunyane: os filhos, os tios, os sobrinhos, a mãe…. Por onde andam? Não há relato no livro que tenham atravessado a fronteira para o Transvaal. Mas também não está dito que permaneceram no Estado de Gaza. Ademais, terão recebido algum reconhecimento ou estão votados ao esquecimento? Como se não bastasse, senti também falta de ver a continuidade do legado do imperador na nossa história recente. Porque ele não é apenas uma figura do passado. Ele ainda respira na memória colectiva, na identidade de muitos. E essa história — ou esse silêncio — também precisa de ser contada.

Três semanas depois de terminar esta leitura, continuo habitado por ela. E se escrevo tudo isto, é por respeito e admiração. Esta trilogia vai entrar para a história como uma das grandes obras da literatura africana. A sua escrita, ignorando alguns lapsos ortográficos e de pontuação, é de uma beleza estonteante, onde cada palavra parece escolhida com a delicadeza de quem entende que a língua também pode ser uma forma de ressurreição. Mas é também um gesto político e espiritual. Um grito e uma oração. Um mapa e um espelho. Por tudo isso, deixo aqui, com humildade e reverência, a minha vénia ao autor. E, quem sabe, o meu apelo. Que esta história ainda encontre mais uma página. Que Imani possa ter o seu fecho. Que as ossadas encontrem um descanso final em suas terras. Que o silêncio da areia se transforme, um dia, em voz.

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