“O gás um dia vai acabar… e a transformação energética é o futuro”

“O gás um dia vai acabar… e a transformação energética é o futuro”

Os assuntos em torno do sector energético estão em debate em todo o mundo. O maior propósito de todos eles é encontrar formas de uma exploração sustentável, e, acima de tudo, com menor impacto ambiental.

Moçambique não está alheio a isso, mais ainda por ser um país extremamente rico em recursos fósseis e renováveis.

Assim, o MZNews entrevistou Jocelyne Machevo – Consultora em Energias e Recursos Minerais, Presidente do Pelouro de Energias da AMEPRH, para saber quais são as directrizes que o nosso país deve adoptar, e, numa última linha, o papel da mulher no sector.

As propostas partem de uma base realística de que os recursos fósseis como o gás vão um dia esgotar, daí que a sua exploração não deve ser o fim, mas o início para aproveitar-se da melhor forma as fontes de energias renováveis abundantes no país.

Muito se fala do potencial energético de Moçambique, mas nos últimos tempos fala-se mais dos recursos naturais do centro e norte, e parece que (i) é apenas isso, e (ii) as energias renováveis foram esquecidas. Na verdade, qual é a matriz energética de Moçambique e qual é o seu potencial?

Moçambique é um país abundante em recursos energéticos, desde os combustíveis fósseis como o carvão mineral e o gás natural até aos recursos renováveis como a energia solar, hídrica, eólica, entre outros. No que diz respeito ao gás natural de que tanto se fala nos últimos anos, é importante notar que existe a reserva de gás no sul do País, em Pande e Temane (na província de Inhambane) que se encontra em fase de produção desde 2004. Mas também existem as reservas de gás natural recentemente descobertas na Bacia do Rovuma, na Província de Cabo Delgado, ainda em fase de desenvolvimento. Estas descobertas são consideradas  de classe mundial, tendo colocado Moçambique entre os países mais proeminentes em termos de potencial para a produção e exportação de gás. Por outro lado, temos também o privilégio de ter a abundância de fontes para a energia solar em todo o território, a hídrica, a eólica, bem como a de biomassa. Ou seja, o nosso país é extremamente rico tanto em combustíveis fósseis como em energias renováveis.

Apesar desta riqueza, neste momento grande parte destes recursos energéticos ainda não estão a ser explorados no seu potencial máximo, facto que é reflectido nas nossas estatísticas nacionais de acesso à energia, onde a maior parte da população ainda não tem acesso à energia. E quando falamos de acesso à energia não significa simplesmente ter a casa conectada à rede nacional de electricidade, mas falamos de um acesso à energia que seja confiável, sustentável, moderna e a um preço acessível para todos moçambicanos, e também competitivo do lado dos investidores.  

Pessoalmente, vejo um potencial muito grande nas nossas reservas de gás natural. É verdade, vivemos um momento crítico a nível global relativo às mudanças climáticas e existe esta pressão internacional muito grande para fazermos a Transição Energética para fontes de energia mais limpas. No entanto, é importante que sejamos realistas, existem questões sobre as fontes mais limpas que devem ser consideradas. Por exemplo, questões relacionadas à tecnologia. Muitas tecnologias ainda estão em desenvolvimento/maturação, por exemplo as baterias para o armazenamento da energia solar; ou então questões relacionadas aos custos desta transição e a sua acessibilidade monetária, pois existem países que estão a fazer a transição de fontes com baixo teor de carbono para fontes com maior teor de carbono simplesmente por causa dos altos custos associados que resultam em preços altos para a população.

O facto é um, a transição vai sim ocorrer, mais cedo ou mais tarde, é uma questão de sobrevivência. No entanto cada Governo deve ser realista o suficiente para adoptar a melhor estratégia que se adequa à realidade do seu país e não simplesmente importar estratégias de outras regiões. Como país, precisamos olhar para os recursos existente e desenvolver uma estratégia que vá de encontro às nossas necessidades actuais e futuras. Moçambique tem ainda problemas básicos, para podermos alcançar os objectivos/metas climáticas é importante que primeiramente alcancemos o acesso universal à energia, e a nossa estratégia de transição energética deve reflectir isto.

Por isso, acredito que devemos alavancar o uso do gás natural que é abundante e de qualidade excepcional (relativamente mais limpo) para a geração de energia, de modo a podermos garantir a industrialização de certas regiões e também garantir o acesso à energia a mais cidadãos.

No entanto, devemos igualmente impulsionar o uso dos recursos energéticos renováveis, aproveitar o imenso potencial para a energia solar, hídrica e eólica.

Que investimentos seriam mais flexíveis para se começar a utilizar outras fontes de energia como alternativa à energia convencional da rede nacional?

De facto, é importante aceitarmos que neste momento almejarmos que todas as famílias moçambicanas estejam conectadas à rede nacional é uma ilusão. Assim, torna-se importante escolher as opções que sejam mais flexíveis e acessíveis em termos de custos. A energia solar para além de ser o recurso renovável mais abundante é também bastante importante para garantir o acesso à energia, sobretudo, em zonas rurais, devido à sua grande flexibilidade. Esta é definitivamente uma aposta para estas regiões, onde podem ser fornecidos mini-kits de painéis solares às famílias e também podem ser instaladas micro e mini-redes, de energia solar para garantir que a população da zona rural tenha acesso à energia, e é importante reconhecer que o Governo já está a trabalhar neste sentido e existem várias iniciativas neste âmbito.

Uma outra alternativa de investimento de que pouco se fala, é a energia de biomassa, aproveitando especificamente o o bagaço (resíduo) das fábricas de açúcar. Ao invés de simplesmente ser queimado todos os anos, pode-se aproveitar como matéria-prima para a produção de energia. Como país podemos considerar investir nestas soluções e sair da tradicional rota de desenvolvimento de uma matriz energética.

Qual deve ser a aposta de Moçambique neste período do “boom” do gás natural considerando o potencial e a infinidade das energias renováveis?

Definitivamente os combustíveis fosseis vão exaurir em algum momento, são reservas finitas. No mundo inteiro há países que já estão a atingir o limite das suas reservas, já têm as suas reservas completamente exploradas e isto naturalmente vai acontecer com Moçambique. A partir do momento em que se iniciar a produção, o ciclo de vida da reserva pode estar em torno dos 50 anos, dependendo da produção anual da reserva. Portanto, devemos começar a pensar e agir imediatamente na estratégia para além dos 20 anos. Vamos usar o gás como ponte para desenvolvermos o nosso país e não como destino. Neste momento o futuro a longo prazo é definitivamente das fontes limpas.

Por outro lado, sabendo que o gás vai acabar porque não começamos a investir nas renováveis directamente? Esta poderia ser uma pergunta lógica. Mas o grande problema neste momento é que a tecnologia das energias renováveis ainda não está tão desenvolvida.

Moçambique é um país ainda em desenvolvimento, e um dos pontos para alavancar este desenvolvimento socioecónomico é a industrialização. Infelizmente, ainda não se pode fomentar a industrialização a partir de energias renováveis devido às suas limitações técnicas e tecnológicas. Assim sendo, é importante garantir a inclusão de combustíveis fósseis que forneçam a energia base (base load) para potencializar esse desenvolvimento industrial. Daí que é importante manter o gás na matriz energética, enquanto a nível mundial vão-se desenvolvendo tecnologias que permitam o uso das energias renováveis para potenciar e permitir a industrialização nos diferentes países em desenvolvimento.

Novamente, a questão da transição energética tem que acontecer, é uma realidade e é para onde estamos a ir. É também uma questão de sobrevivência. Pelo que, esperamos que a médio-longo prazo tenhamos um sector energético em que a percentagem de energias renováveis esteja acima dos 50% para podermos alcançar as tais metas climáticas que estão a ser impostas a nível mundial.

Cada vez mais a indústria da energia se depara com novos desafios, principalmente, pela sua demanda e exigência de qualidade menos prejudicial ao ambiente. Recentemente representou Moçambique na Conferência GasTech 2021, nos Emirados Árabes Unidos. Quais foram as principais conclusões das sessões em que participou?

Foi a primeira Conferência presencial depois de dois anos.  Eu participei na Conferência de 2019 em Houston, e no ano passado foi virtual, e naturalmente quando é assim não existe essa possibilidade de ter o mesmo nível de painelistas que estiveram na conferência deste ano. No primeiro dia, na sessão de abertura, nós tivemos vários painelistas com elevado poder de decisão, entre eles o ministro dos Emirados Árabes Unidos e o Secretário-geral da OPEP (OPEC, em inglês) – que esteve a representar África –, e ele enfatizou o facto da questão da transição energética que está a ser mal-interpretada e veiculada, algo com o qual me identifiquei bastante e já tinha comentado com os colegas da área.

O que acontece é que temos “uma agenda” e há países que estão a dizer: “temos a questão da mudança climática, aquecimento lobal, devemos cortar as emissões de gás de efeito estufa imediatamente e passar a fontes mais limpas”. É verdade que temos essas questões todas, mas é mais importante olhar para a realidade dos países. Muitos desses países que veiculam essa “agenda” são países já desenvolvidos. Se olharmos para os países da África, em especial a África Subsaariana, grande parte da população não tem acesso à energia. Um exemplo: Em Moçambique temos carros movidos a combustíveis fósseis (diesel e gasolina) e temos carros também a gás, embora sejam poucos.  Mas o que a transição energética está a dizer é: “o jovem moçambicano que começou a trabalhar agora, que está a guardar dinheiro para poder comprar um carro acessível a gasolina ou diesel deve esperar até que por um lado os carros eléctricos estejam disponíveis para o mercado moçambicano e que o país tenha a infraestrutura mínima para acomodar estes veículos, e por outro lado terá que passar mais tempo a guardar dinheiro pois os carros eléctricos neste momento ainda são relativamente de elevados custos”. Este é um exemplo hipotético, mas essencialmente é o que estaríamos a fazer, estaríamos a privar a nossa população por mais tempo de ter acesso a melhor qualidade de vida e serviços básicos. Então, é importante contextualizar esta transição energética.

Algo que foi muito bem explicado pelo Secretário-geral foi que o problema principal do continente neste momento é o acesso à energia, independentemente da fonte, pois os benefícios do acesso à energia são tangíveis na economia de um país. Assim, não se pode condicionar o acesso à energia com o uso de fontes renováveis apenas, que nem se quer têm as tecnologias completamente maturadas para ser aplicadas no contexto dos países em desenvolvimento. Vamos utilizar aquilo que está disponível em termos de recursos energéticos.

Quanto poderia custar a transição energética actualmente olhando para as tecnologias aplicadas para se aproveitar os recursos energéticos?

Um dos grandes problemas de acesso à energia é preço. As energias renováveis são altamente tecnológicas. A nossa energia (da rede nacional) já é subsidiada, e para se falar de energias renováveis em Moçambique significa que a população deve ter um poder de compra ainda maior para poder pagá-la. Este custo da transição deve ser devidamente debatido e esclarecido. Os Governos, o sector público e o privado e as empresas internacionais devem analisar as suas estratégias; as empresas têm que rever os seus modelos de negócio, o seu portfólio e ver uma forma de se ajustar a esta nova transição energética e agregar valor acima de tudo. E para fazer isto precisamos de ter algum tipo de diversidade em termos de profissionais.

Que exemplos pode nos dar da transformação energética com sucesso?

Diferente do nosso cenário está Portugal, que era completamente dependente de importações pois não tinha nenhuma reserva de combustível fóssil, e actualmente, está em um grande nível em termos de matriz energética, muito acima do que eles perspectivavam, conforme partilhado pelo Secretário de Estado de Energia durante a Confrência GasTech 2021. O país espera que até 2040 tenha a sua matriz energética completamente baseada em energias renováveis. Mas atenção, que o contexto é completamente diferente do nosso.

Como é que Moçambique pode suprir o défice de mão-de-obra ao mesmo tempo que permite uma exposição mais inclusiva a essa indústria?

Quando às quantidades de gás que foram descobertas entre 2010-11 pelas grandes empresas, estas diziam que Moçambique não tinha recursos humanos capacitados para integrar a indústria, e isso era um facto. Não tinha como eles chegarem aqui e esperar encontrar uma mão-de-obra preparada para integrar uma indústria que basicamente não existia em Moçambique. Infelizmente a indústria do petróleo e gás é uma indústria muito rigorosa e rígida, e engloba aspectos que não podemos aprender do dia para a noite, e nem podemos abrir mão. O importante neste momento que tem estado a acontecer é que o Governo e as Concessionárias estão a tentar beneficiar-se dos projectos que estas têm noutros países para garantir pelo menos o mínimo de exposição aos moçambicanos. Mas existem aspectos que nós como país podemos tentar implementar e aprender também de outros países. Através de parcerias, ao invés de existir um número reduzido de moçambicanos a ir para fora e ter esta exposição, podemos tentar replicar e usar a tecnologia para recriar o ambiente das operações em Moçambique em Centros de Excelência e termos um maior número de moçambicanos a beneficiar dessa exposição. É algo que está a ser feiro noutros países e acredito que existe algum esforço do Governo a tentar implementar algo parecido.

Nestes termos qual é o lugar da mulher nesse processo de transformação energética?

A mulher, infelizmente é o género mais afectado pela pobreza energética e isto é real em qualquer parte do mundo. Ela percebe exactamente quais são os desafios e implicações da pobreza energética para a sua comunidade. Logo, nada mais justo do que ela estar na mesa de debate para propor soluções.

Hoje estamos mais bem representadas do que há alguns anos atrás. Quando entrei para o sector já existiam mulheres na indústria da energia, eram poucas, mas já estavam lá e ocupavam cargos de liderança: a nível do Ministério, FUNAE (Fundo de Energia), ENH (Empresa Nacional de Hidrocarbonetos), INP (Instituto Nacional do Petróleo), só para mencionar algumas instituições. E acredito que o facto de termos essas poucas mulheres foi importante, pois, mostrou-nos que era possível ter mulheres nessa indústria e serem bem-sucedidas. Daí a importância da exposição e representação. Mas ainda há muito para se fazer naturalmente, porque ainda não chegámos à tal almejada equidade de género. Mas esse é um problema estrutural que deve ser resolvido desde o início, lá na base escolar!

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