“Mais importante do que o exercício da escrita, no caso de Moçambique, é a disponibilidade para a conversa”

“Mais importante do que o exercício da escrita, no caso de Moçambique, é a disponibilidade para a conversa”

Entrevista de Catarina da Ponte, retirada do portal “revistapremio”

Depois do livro, “O caçador de elefantes invisíveis”, uma colectânea de contos publicada há menos de um ano (em Outubro de 2021), Mia Couto regressa ao romance histórico, numa narrativa que recua ao período que antecedeu a participação de Portugal na primeira guerra (1914). Em entrevista à prémio, o escritor e biólogo moçambicano, prémio Craveirinha no ano em que se comemorou o centenário do nascimento do poeta, fala-nos deste seu novo projecto literário, recorda como foi ficar sem o “chão” do seu último romance depois da passagem do ciclone idai e da necessidade de construir um espaço de partilha com o “escutador” para que as histórias valham a pena contar.

Ainda se lembra o que queria ser quando era criança?

Dizem os meus pais que comecei por querer ser um gato. Havia-os às dezenas na nossa varanda, vinham comer restos que a minha mãe guardava para eles. Eu misturava-me com os bichos, deitado no meio deles, sem dar conta de uma qualquer fronteira entre o humano e o não-humano. Vem daí o nome, este Mia, que inventei para mim mesmo. Depois, e disso já me lembro, quis ser bombeiro. Salvar gente. Talvez não fosse apenas uma motivação altruísta. Havia no combate ao fogo uma narrativa que correspondia ao ambiente cristão em que cresci. O fogo é a própria matéria do inferno.

O escritor Ken Robinson diz que “a escola mata a criatividade”. O Mia também já referiu que o preocupa o facto dos mais novos não terem a capacidade de criarem as suas próprias histórias, mais até do que não as lerem. Considera que a prática da escrita e, talvez, da biologia têm-lhe permitido alimentar a espontaneidade e este olhar poético e renovado sobre a vida?

Uma das grandes lições que aprendi na escola foi a não estar onde estava o meu corpo. Foram anos de apuramento da distração, como uma falsa ausência. A directora da escola primária inscreveu na minha caderneta a mesma avaliação durante os quatro anos: “O aluno nunca faltou, mas nunca chegou a estar presente”. É claro que esse ambiente cinzento correspondia a um modelo de escola que me parece estar superado. Muita água correu debaixo dessa ponte. Hoje a escola é, em geral, mais luminosa e mais habilitada a alimentar a inquietação e o espanto do encontro com a vida e com os outros. Mas é preciso recordar que, para milhões de crianças do nosso mundo o problema não é o modelo da escola. É não haver escola nenhuma. Em Moçambique, isso ainda sucede em dimensões dramáticas. Há regiões que, por causa da guerra, a escola está suspensa para milhares de crianças. E ainda predomina, entre as famílias rurais, a ideia de que as raparigas rendem mais se ficarem em casa. A maior parte das meninas não chega à terceira classe.

“Tentei dizer o que sabia sempre com verdade, com clareza, da forma mais positiva e sem transmitir medo, pânico ou ansiedade.”

Quase tudo e quase nada são bons pretextos para encetar uma página em branco?

Não existe página em branco. O que está em branco, o que está em falta, apenas existe dentro de nós. No meu caso, eu preciso inventar alguém que, do outro lado da página, me escuta. Preciso de inventar esse escutador para sentir que vale a pena partilhar uma história e praticar essa veleidade que é pensar que vale a pena criar esse espaço de partilha.

Moçambique tem sido, desde sempre, palco de vários eventos climáticos extremos, o mais devastador foi em 2019 com o ciclone Idai que deixou o país destruído. Nessa altura, temeu ter ficado sem o chão e sem o imaginário das suas histórias de infância?

O meu último romance [“Mapeador de Ausências”, 2020] está centrado na minha infância, uma infância convertida num lugar inventado. Esse lugar é a minha pequena cidade, a cidade da Beira, no centro de Moçambique. Chamo-lhe “pequena” do mesmo modo que olho para os meus filhos como se coubessem ainda no meu colo. A cidade onde nasci e vivi até aos dezassete anos cresceu imenso e já pouco corresponde a essa imagem que dela guardo. Desde 1972 que vivo em Maputo. Enquanto escrevia o romance passei a visitar mais frequentemente a minha cidade. Já estava no final do livro quando sucedeu o ciclone. Dias depois sobrevoei a cidade e chorei no avião vendo submerso aquilo que era o chão da minha infância. Pensei que algo de mim naufragara, se afundara sem remédio. Pode-se ser órfão de uma terra? perguntava-me antes de aterrar. Na visita seguinte, já os beirenses estavam reerguendo a cidade. Agora usa-se um termo insuportável: “resiliência”. Mas o que estava ali acontecendo, essa capacidade de enfrentar os fins de mundo, foi vital para que eu me entendesse a mim mesmo e, assim, entender como iria fechar o meu romance.

Ainda sobre a sua “terra”, onde a tradição oral é marcadamente mais forte do que a escrita. Além das palavras que colecciona nas ruas, que outras sensibilidades gosta de guardar para depois transformar em palavras?

Mais importante do que o exercício da escrita, no caso de Moçambique, é a disponibilidade para a conversa. Essa conversa é uma espécie de alimento vital para manter vivas as redes sociais de afeto e de partilha. Há uma espécie de re-fabricação permanente de uma família alargada. As pessoas param na rua, contam histórias e falam de coisas íntimas sem se conhecerem. Não persiste felizmente uma noção rígida da fronteira entre o que é do domínio privado e o que é do domínio público. Sempre que posso ando a pé pela cidade e demoro horas a dar a volta ao quarteirão porque em qualquer canto há alguém que está desejoso de falar e escutar. Mantenho assim a ilusão de viver numa pequena aldeia.

Tem um processo de escrita curioso, o que escreve por último, torna-se muitas vezes o início do livro e vice-versa. Sente que na vida, e nas suas relações, alguns inícios também são provisórios?

Uma das lições mais importante que Moçambique nos dá é a ausência de medo ao que é provisório, ao que é incerto e imprevisível. Há muita gente por esse mundo fora em apoio psicológico porque vive num ambiente em que a ausência de certeza traz a angústia da insegurança. Prevalece em Moçambique uma espécie de sabedoria que aceita o caos e o mistério como algo que não são sinónimos de uma ameaça cósmica. Na narrativa africana não há princípio nem fim. O grande mistério da criação do Universo não se coloca: o mundo sempre existiu. E os mortos nunca morrem. Estarão vivos enquanto houver vida.

É importante as línguas serem plásticas?

Começo pelo mais óbvio: as línguas são sempre plásticas e não há nenhuma que seja mais que as outras. Os idiomas são construções históricas, com percursos antigos e horizontes futuros imprevisíveis. Todos eles são construções plásticas porque são a voz da nossa criatividade. Dou-lhe um exemplo: no Sul de Moçambique existe um verbo muito curioso: “magaivar”. Significa desenrascar, improvisar soluções engenhosas. De onde vem o verbo? De uma série televisiva chamada MacGyver em que um agente americano resolve os mais intricados problemas inventando soluções com materiais que estão à mão de semear. O verbo pegou porque corresponde a uma cultura profundamente instalada. Há séculos que os moçambicanos sobrevivem à custa da sua inventividade. A maior parte das pessoas que usa este verbo nunca viu a série e desconhece completamente a etimologia desse neologismo. A palavra foi adoptada pela vida. Já ninguém se lembra do personagem de uma série que passou quando a televisão existia apenas em alguns bairros de Maputo. Sobreviveu o que era preciso. E ainda bem porque esse MacGyver era apenas mais um agente secreto ao serviço dos interesses norte-americanos.

Como caracteriza a produção literária africana na contemporaneidade?

Não tenho competência para falar da produção africana que é uma área muito vasta. Mas vivemos um momento bom e o ano passado comprovou essa pujança: os maiores prémios internacionais de literatura foram quase todos ganhos por africanos. Incluindo o nosso prémio Camões que foi atribuído à minha amiga Paulina Chiziane. Não se trata apenas de reparar uma injustiça histórica que pesou sobre uma parte da humanidade que foi invisibilizada e que parece só ter direito a existir nos momentos de guerra e desastres naturais. Trata-se de fazer justiça a um território culturalmente riquíssimo, onde mora a maior diversidade cultural e linguística do planeta, onde moram histórias de resistência e de incorporação de patrimónios de sabedoria profundamente heterogéneos.

Faz questão de lançar sempre primeiro os seus livros em Moçambique?

Sim. Esse é o princípio. Os meus livros são de um tempo e de um lugar. É uma questão de respeito.

A era digital, nomeadamente as redes sociais, são aliadas ou inimigas da veiculação da literatura e da língua portuguesa?

São as duas coisas. Ajudam a ver o mundo de forma global e instantânea. As redes de informação fornecem uma ideia falsa de proximidade e transmitem uma visão redutora e empobrecida da realidade. Mas eu sou optimista. Essas ferramentas digitais não são, em si mesmas, boas ou más. Tudo depende de nós.

“Conto histórias para dar voz aos meus fantasmas”. Com a idade, os fantasmas multiplicam-se? E a escrita, contem-se ou expande?

No meu caso, e só posso falar de mim, sucedeu o seguinte: fui aprendendo a arte da contenção. E percebo que a beleza não resulta de uma construção. Mas de uma revelação. A beleza acontece e é esse fazer acontecer que deve desafiar o artista. Aprendi também a não querer dizer tudo, a não escrever numa página o que pode ser sugerido numa única frase. Entretanto, perdi a espontaneidade da adolescência. Às vezes, tenho saudade dessa ousadia.

O que se segue ao “Caçador de Elefantes Invisíveis”? e ao “Mapeador de Ausências”?

Estou a preparar um novo romance que se passa em 1914 na fronteira do rio Rovuma, no período que antecedeu a participação de Portugal da Primeira Guerra. Estou ainda a recolher informação histórica. Há muita informação sobre esse período e eu diria que essa abundância de fontes está neste momento a atrapalhar-me.

Foi recentemente galardoado com o Prémio de Literatura José Craveirinha, precisamente no ano em que se celebra o centenário de nascimento do poeta que dá nome a este galardão. Tem um significado especial para si receber este prémio?

Conheci pessoalmente José Craveirinha e disfrutei de um bom tempo de conversas longas sobre o que podiam ser o papel da poesia numa nação ainda por nascer. Receber o prémio no ano em que se comemora o seu centenário não é para mim uma mera coincidência. Mas é um reencontro com esse homem extraordinário que me ajudou a ver um país por entre ruínas e a manter um sonho de uma casa que também é feita de palavras.

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