A cova no Lhanguene e o trapo do meu padrasto…

A cova no Lhanguene e o trapo do meu padrasto…

Escrito por Sérgio Raimundo

Primeiro foi um balão enorme que se fixou no gancho do umbigo do meu padrasto, primeiro foi uma carruagem de larvas que carregava fardos de moscas nas pernas do meu padrasto, mas continuo achando que primeiro foi a boca virada do meu padrasto que cuspia palavras com sílabas tortas e coxas. Em poucos dias o meu padrasto virou um trapo de casa; às manhãs era arrastado pelos pés e estendido ao sol e ao anoitecer era evacuado pelas gruas das mãos para o quarto. De quando em quando era esquecido no quintal, mas a falta dos seus pulmões explodindo de tosse, entre as paredes, despertava-nos e corríamos para carregar o nosso trapo.

O meu padrasto era já um trapo e por isso um dia o tentamos acordar, mas tinha a bainha dos olhos caída e as linhas da respiração como que descosidas. Todos começaram a chorar, a minha mãe enxugou-se as lágrimas no seu corpo, porque era um trapo. As filhas do meu padrasto, umas girafas de pescoços enormes, dobraram o trapo, colocaram-no sobre cama e chamaram o carro da funerária. Não me sai da cabeça a cadeira de rodas do meu padrasto pendurada na parede do quarto da minha mãe.

O meu padrasto era já um trapo e por isso um dia o tentamos acordar, mas tinha a bainha dos olhos caída e as linhas da respiração como que descosidas.

Recordo-me do pastor benzendo o caixão do meu padrasto com gotas de areia e dizendo: “aqueles que andam rectamente entrarão na paz”. E o meu padrasto que nunca andou rectamente, que sempre andou de corpo entornando na borda da cadeira de rodas, o meu padrasto que sem as muletas dos nossos ombros rastejava pela barriga pelo quintal, ele que podia até juntar-se e decidir andar directamente, mas sempre era arrastado pelo vento porque era um trapo; diversas vezes não o achamos na rua porque o seu estômago, cheio de pedregulhos de comprimidos, dava-o um pouco de peso. 

E até hoje não entendo porque a funerária trouxe um caixão grande para meter o trapo do meu padrasto, não entendo porque todos choraram no cemitério quando as pás taparam o trapo do meu padrasto.

Recordo-me do pastor benzendo o caixão do meu padrasto com gotas de areia e dizendo: “aqueles que andam rectamente entrarão na paz”.

“Aqueles que andam rectamente entrarão na paz”, e o meu padrasto entrou à cova na paz, pois era trapo e nunca andou directamente. Se ao menos tivessem metido o trapo com a sua cadeira de rodas no caixão, pelo menos ia tropeçar dentro da cova tentando andar directamente e na porta do céu ajeitar-se-ia para entrar em paz. 

Depois de meses fomos para ver a sepultura do meu padrasto, mas em seu lugar tinha sido colocado um novo cadáver; o meu padrasto, que era um trapo velho, tinha sido exumado por pás e atirado ao vento para andar directamente. Coitadinho do meu padrasto, fiquei imaginando-o andando pelo cemitério sem sua cadeira de rodas, ele que transbordava a barriga e ia rastejando na boleia do seu próprio corpo.

Depois de meses fomos para ver a sepultura do meu padrasto, mas em seu lugar tinha sido colocado um novo cadáver; o meu padrasto, que era um trapo velho,…

Corremos aos escritórios do cemitério para reclamarmos do nosso trapo que tinha sido arrancado, mas a funcionária que nos atendeu, preferiu brincar connosco perguntando-nos a data do enterro, o nome completo do meu padrasto e no fim acabou com a brincadeira, pois tirou-nos as vendas dos olhos e disse que não podia fazer nada.

Apeteceu-me naquele momento desenterrar a frase que o meu padrasto apedrejava-me com ela depois de um copo de vinho: “e tu achas que tens jeito para ser filho de alguém?”. Se o meu padrasto ali estivesse de certeza espetaria o dedo à testa da funcionária e com desprezo diria: “e tu que nem sabes onde estou, achas que tens jeito para ser filha de alguém?”.

 

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